quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Natal

NATAL
Mais uma cambalhota no passado a catrapiscar o olho ao presente e ao futuro, que é como quem diz: quem me dera virar o mundo do avesso e reaver alguns retratos que a retina mantém gravados, algures, a um cantinho do hemisfério cerebral direito.
Não me aperalto, deveras, na elocução directa, mas, desta vez, terei que recorrer à narrativa na primeira pessoa, à revelia do colectivo.
Na tela, como sabereis, e porque Deus não prodigalizou em mim tal dom, não dou uma prà caixa. Pintar, quando muito, a macaca. Só passei a Taprobana no desenho geométrico. Quanto às artes do Grafismo ou do Grafito não agarrei o trenó solar, pelo que, imagino, já é tarde. Mas, para que conste, gosto muito de pintura.
Hoje, convidava-vos a apreciar pinturas que evocam, especificamente, a temática “bebedores” ou “jogadores de cartas com o respectivo copinho a vitaminar e a apimentar ideias e actos”, tratada por estrelas do firmamento da paleta e do pincel, do guache, do lápis de carvão e da tinta-da-china (verdade Manel!?), dos quadros a óleo (com significado ambivalente, para alguns...), etc., que nos esbugalham os olhos de delícias. A título de exemplo: “o fado” de José Malhoa, “os bebedores” de Beraud (não confundir com berardo fóke iú, ligado à pintura por via exógena) ou Daumier, sem desprimor para outros pintores ou retratistas, amigos do produto sagrado: vino, até porque, in vino veritas est.
Vão perdoar-me os eméritos Degas, Manet, Picasso ou Vicent van Gogh, autores tão apreciados e estimados, mas que elegeram o absinto, bebida nefanda, como paradigma do pingalho.
Porque me passam nos olhos saudades, o caleidoscópio das inquietações não me deixa seguir um fio condutor único; é mais o combustível que incendeia este ir e vir de pensamentos e vivências afins, nos quais tropeço aqui e ali. Um defeito, entre outros, dos muitos que tenho e de que os amigos se queixam, mas que, suponho, ainda me adornará o esquife no cortejo para New Orleans, mais enfático que grinaldas! E, como caleidoscópio que é, nele, os fragmentos da travessia da vida, tão efémera, diga-se, esforçam-se por estar agradavelmente organizados, a salvo do labirinto do esquecimento.
Não causará, pois, estranheza, que ainda que tenha como pano de fundo “os bebedores”, mesmo assim, escorregue no filme “mundo cão” de Gualtiero Jacopetti a mostrar o que já na nossa geração se ia produzindo do mais inqualificável e gratuito. Passadas cinco décadas, avolumam-se dados de que se refinam as vilezas anteriores. Oremos, para que das cinzas da frustrada cimeira de Copenhaga, fénix faça o milagre de nos incitar a curiosidade de meditar e ajudar a melhorar o ambiente que nos rodeia.
Em desabafo de quem cá anda a prazo, vou por um pantufo quarenta e dois biqueira larga à entrada da chaminé da cozinha, para que o pai natal, o menino Jesus, os reis magos, o santa claus ou outro cappo das fantasias e brinquedos, nos satisfaça, a todos, um ou outro desejo (o meu, confesso, é de vos poder continuar a morder as canelas...) e, sem ofensa, e porque a época o aconselha, convidar-vos a reflexão intimista, sugerindo-vos, como guia espiritual, sem laivos de armadilha, a releitura de “cândido” de Voltaire.
No íntimo, o meu pedir (e sonhar) vai direito ao coração do rei mago Belchior para que, se possível, prorrogue validade ao passaporte deste humilde descendente de Jafé e carimbe o visto "PSA negativo", por mais uns tempos.
Mas, saudosismos à parte e moralidades arredias, a prossecução desta incursão pela memória obriga-me a arregaçar as mangas para reproduzir e emoldurar o quadro “de quem vendeu a vinha para comparar o lagar” … uma figura humana marcante, não dissimulada, que não se dava importância, nem a pedia, um padrão sublime, uma vivencia sentida até às entranhas, que, só recordar, já traz soluços e uma lágrima furtiva. Ponto de ordem. Quando antes evoquei o filme “mundo cão” e Gualtiero Jacopetti, fiz um trocadilho (a que já estais habituados), para fazer a “apologética” de um “mundo são” e lembrar Fausto Copetti, porque o “Já” (de Jacopetti) …lá vai… e o Coppeti, vai indo(…).
O modelo humano para um quase retrato de hoje, recorda o Natal.
Descrevo-o:
Palitinho quase sempre ao canto da boca, mas que, no tempo certo, deslizava entre os lábios que nem malabarista em acto de rola-rola, sem mãos, entre as duas comissuras labiais.
Prisca, onça ou metade de pitilho cortado ao meio, prensado na orelha.
Perfil adequado ao jogador de cartas de taberna e apreciador do calor do sol de inverno, na fase pós-prandial do almoço.
Rural que transporta ao ombro - em jeito porventura herdado "do" assentar praça -, o omnipresente sachinho de cabo comprido, de alvado a tapar o sol, com ou sem orelhas, de extirpar ou não, multiuso: para o cebolo, jardinagem, autodefesa, moleta ou bengala; "tocador" de crias...até para dois dedos de conversa...- não pesa muito e dá descanso aos cotovelos -.
Eis aqui alguém das berças (...), um campónio da velha guarda, pouco ou nada princês, amarrotado no vestir, mas de colete: um castiço, por contraposição ao urbano janota, manga-de-alpaca.
Este sujeito cheio de predicados, sempre pronto a despir a camisa, é o mesmo que convidava em jeito de desafio: «não decilitras?», ou “vai um?”... copo. Nesse convite estava implícita a entrada iminente de Amigos na velha e escura adega, onde a luz só entrava pela porta feita integralmente de madeira, que fechava por aldraba.
Já dentro, o anfitrião dirigia-se para o pipo (ou pipa!), pegava no ubíquo copo, habitualmente de vidro grosso canelado, rodava com perfeccionismo a torneira de madeira, e ouvia-se a onomatopeia:"tchiitchiiiiiii...". Deixava, então, cair de alguma altura "a mais nobre das bebidas", até encher o copo a fazer rosário.
A seguir, com toda a reverência, em ode aos Amigos, dirigia-se ao feixe de luz que teimava em entrar através da porta entreaberta - parecendo querer associar-se ao convívio -, e apreciava a cor e a vida do néctar em contraluz. Aí, num hino à natureza e à criação, soltava já uma cuspidela, tal a alegria de paladar satisfeito, o sorvo adivinhava.
Imagem que seguramente teria sido modelo ao quadro de Franz Halls "O Alegre Bebedor".
Então, com total discordância da ciência enológica, cometia o sacrilégio de beber de um trago o "copo". Como que oferecendo o que de melhor tinha para os Amigos. E, em remate cerimonioso e ritual, afinando a língua em castanholas, soltava um estalido de prazer sentido e partilhado: Pêtááá...ahhh!
Tocados por um ritual inebriante, com imaginação solta, perder-se-iam, os Amigos, noite dentro, em espiral de alegria, nesse espaço cénico comunitário, sob um céu acolhedor, despojado de ornamentos que não fossem essenciais àquela união sem remandiola. O ornamento musical "bota aí"(...), "à capela", soava espontâneo, afinado, cadenciado, com brio, até à fase plateau (...).
Era uma vivência mágica, bela, saborosa. Um verdadeiro fresco de sentimentos a jorrar amizade, humanismo, solidariedade, mesmo sã ingenuidade.

sábado, 28 de novembro de 2009

Rádio Moscovo não fala verdade!

Se este assunto é ou não candente, é ou não oportuno, ou se chega descontextualizado à redacção, dependerá sempre da subjectividade e do coração de cada leitor, ou da interpretação que cada “actor” der a esta peça. Não é, pelo menos, despiciendo, asseguro-vos. É, renovadamente, dar voz a um simples que teve um projecto de vida no horizonte, por direito próprio e natural ambição.
Alguns vocábulos terra a terra, do quotidiano, pintalgam aqui e ali estas notas biográficas, que a galeria municipal nos permitiu buscar ao sótão da memória, proporcionando-nos o guião e a atmosfera temporal, aqui postos ao sabor e ao gosto do cenógrafo!
Há sempre alguém que fica em pulgas ou vista a pele do lobo quando eclode e ataca de frente, alguma ideia febril, alguma visão que tenha a ver com aventuras pueris protagonizadas por respeitáveis marginais à conduta "socialmente correcta": A experiência tem-me confirmado uma forte relação do pulsar do subconsciente com a conjuntura e o tempo do texto. É o caso. E gosto de aproveitá-la, porque ninguém se banha duas vezes no mesmo subconsciente. Mesmo que de alguma croniqueta se trate, digo-o por suspeita antecipada, da apreciação legítima dos meus pacientes leitores. O juízo é livre!
Depois deste preâmbulo, ato o fio da não-ficção apresentando o “modelo”: o Senhor Alfredo Gonçalves Pinto, como consta na conservatória do registo civil.
Este Cavalheiro, ao tempo mais conhecido que os tremoços – perdoe-se-me a metáfora -, foi sendo tratado por Pinto Fundão, marca registada no universo dos Pintos, e que tinha a ver com a sua naturalidade: do Fundão. Poderia ter sido baptizado de Aníbal, Bernardo, Carlos, Duarte, Eliseu, Francisco, Gilberto, Hugo, Júlio, Lino, Manuel, Narciso, Óscar, Rui, Sérgio, Tiago, Ulisses, Vítor, ou Zélio. Tinha o alfabeto e o vocabulário onomástico à mão e de escolha livre. O alfabeto não era ainda matéria vendável, nem colectável, o que trazia a ganância arredia. Já o vocabulário, com a introdução do marketing, não ponho as mãos no fogo... No melhor pano cai a nódoa!
Poderia ter sido Alfredo de Lisboa, do Porto, do Entroncamento, ou outro qualquer da toponimia lusitana; adoptou Pinto Fundão. Não quis nenhum outro epíteto, fosse ele o mais pomposo. Não se embeiçou pela nomeada: Marceneiro, Krauss ou Nobel. Escolheu Pinto Fundão, não por modo de ser fundamentalista – baralho de cartas à parte! - ou fundador de qualquer teoria ou movimento revolucionário. Não. Escolheu-o, porque, simplesmente era “Fundanense” e queria sê-lo até ao último suspiro.
Porquê, então, a intromissão a descompasso desta figura, perguntarão? Entro em matéria.
O Senhor Alfredo Pinto era um homem às direitas não obstante o posicionamento de esquerda, assumido e, por vezes, do avesso, até atravessado! Bom cidadão, bom marido, bom pai; não foi bombeiro, pese embora o seu pendor para encalhar em atitudes altruístas. Podia ler-se na manga publicitária da “sua” avioneta, lá no alto bem acima dos telhados do Largo do Arrabalde quando lhe proporcionavam algum passeio aéreo, a rasgar o vento: "Reparações Pinto Fundão: no prestígio nem um arranhão”!
Pinto Fundão, não foi santo, nem pecador: um homem de bem, ainda que a balança da justiça tenha, por vezes, dois pesos e duas medidas. Descendente de Adão, aquém se atribui mau sémen, tinha, por isso, algumas virtualidades, algumas fraquezas, alguns pecadilhos, que mais não eram que afirmações da condição humana que ele queria redentora. Por entre a sua idiossincrasia, matriz que consubstancia a expressão: “ele é assim” ou “cada um é como é”, sobressaía, episodicamente, um rosto magoado sempre que a sorte era madrasta nos negócios, nas reparações de electrónica, ou o “score” do êxitómetro profissional se revelava pouco edificante. Poderia ter engrossado a Diáspora Portuguesa na demanda penosa de melhor sorte. Não o fez arreigado que estava ao solo pátrio, fixado no dia em que um sonho lhe trouxesse finalmente um sono reparador de infortúnios de toda a espécie. Os tempos eram difíceis em todos os aspectos. Muitas vezes era preciso deitar mão (outras vezes a mão…) ao que se oferecia como ganha-pão ou sustento, quer engolindo sapos, quer fazendo das tripas coração (alquimia contranatura…). É assim que, entre muitas outras soluções de “desenrasque”, vamos encontrar o amigo Pinto na procura abnegada de capicuas da sorte, pedido de encomenda, mais um, feito por amigo do peito, pelo menos até então, um notável comerciante, entrincheirado na mesma rua em que Pinto Fundão tinha a sua moureja, mas do lado oposto. Estes bilhetes capicuas, seriam, posteriormente, vendidos aos espanhóis, “a meias” – isto é: metade para Pinto e metade para o dito comerciante-, que as procuravam como moscas o mel. Foi, neste contexto, que se dedicou à tarefa estóica de encher um saco - que habitualmente acomodava cinquenta quilos de batatas- de bilhetes de eléctrico da Invicta Cidade do Porto. Todo este trabalho acabaria por ter um desfecho tão inglório quão decepcionante; afinal de contas, o referenciado comerciante acabaria por lhe comunicar, sem apelo nem agravo, que nenhum daqueles números prestava para o negócio, e ele, o comerciante, apesar da sua influência patrimonial, social e persuasora, tinha como certo o insucesso. E, antes que caísse o Carmo e a Trindade, o comerciante procurou confortar e aplacar a ira, mais que justa, a Alfredo, com uma palmadinha na sêmea dorsal, dizendo-lhe que haviam perdido a batalha mas não a guerra.

Em desabafo vos digo que este citado comerciante, de apelido Guimarães, foi tido como defensor encarniçado das liberdades da República, e que possuía um fascínio genético para atrair os amigos para registos parodísticos, ou, à mistura: o afiar do dente e o apuro do ouvido ajudados por uma visão de Lince, atributos, quanto baste, para uma critica acutilante de tudo!...-: Guimarães também escutava a Rádio Moscovo.

De regresso ao amigo Pinto Fundão, para recordar, ainda, a paciência olímpica que brindava aos amigos, habitual e preferencialmente mais jovens “os jovens são o futuro; a esperança do amanhã” dizia, como testemunharam três rapazes, hoje crescidos e bem situados no "ranking" social e cultural deste país, que com ele privaram bastantes vezes, em república que partilhavam a essa altura na Rua Almirante Leote do Rego, r/c no Porto. Onde falavam de tudo, de todos e de… todas, oh linda!
Pacientemente, também, procurava ocupar o tempo, esse tempo em que dava cartas, a jogar sueca em que era doutor: táctico, estratega, intransigente, rigoroso e exigente de um elevado nível de desempenho aos “parceiros”. A calma só seria interrompida, por alguma jogada néscia, ainda que fortuita, de um qualquer jogador, ou pela trafulhice, dita “arrenúncia”, premeditada. Aí o caldo entornava, espalhando o mais vivo azedume verbal sobre os violadores das regras do pano verde, dando corpo ao mau ou vilão da fita. Também se abespinhava em sério aviso, quando, proveniente de um ou outro engraçadinho, lhe chegava a mostarda ao nariz, transfigurada em aroma de feijões requentados: - falou Ferreira da Costa -, ralhava aspergindo carolinos!
Tinha ainda outra faceta que caía aos amigos como ouro sobre azul: o seu aturado e vocacional apetite para escutar a difusão da rádio Moscovo e passar as “últimas”. Tão célere quanto a emissora nacional houvesse dito: rádio Moscovo não fala verdade! E já fazia isto desde o tempo dos artesanais receptores de galena.
A sua profissão oficial registada na conservatória, não sei se correspondia à ocupação de facto. Tão pouco sei se era um “self made man” ou de carreira, deixo isso para os historiadores. Sei, isso sim, que dizia tratar por tu os cinco melhores mecânicos da Europa, a esse tempo! O equivalente a tratar por tu os melhores jogadores de futebol ou as melhores estrelas de Hollywood: na minha perspectiva.
Verosímil é o facto de estar acantonado no que eu chamaria de pequena empresa/oficina, o que os intelectuais consideravam atelier e os demais estaminé de mecânica, que dava abrigo aleatoriamente ao trabalho, ao ócio e ao lazer.
Bom, em data imprecisa, na sua chafarrica, este nosso evocado dedicava-se à reparação de uma telefonia, cuja avaria a havia (telefonia) silenciado por ter queimado bobines. O dono do aparelho avariado não largava a porta de Alfredo, pressionando-o com a sua presença e comcomentários pouco lisonjeiros, apontando, em investidas sucessivas, o dedo indicador da mão direita para o céu, lembrando a responsabilidade inerente à publicidade que Pinto colocava na manga da avioneta….
Pinto que já estava farto das rondas assíduas da PSP, efectuadas por polícias protótipo, como os agentes Curalha e Totó, entre outros, ao mando certeiro de Isaac (um intrépido guardião da noite, Ilda que o diga...). Murmurava Pinta, entre dentes: - Só me faltava ter que aturar mais este (cliente); sempre aqui que nem ferrinho, como carranha colada em dedo, a morder as canelas e a recalcitrar, só porque o arranjo do aparelho, que ele diz urgente, vai a passo de caracol-. Esta insistência saturava um morto, quanto mais quem, sem mácula, como Alfredo, não podia perder as estribeiras ou o verniz com clientes, por mais broncos que fossem.
O concerto do rádio demorava-se pela falta de algumas peças que tardavam em chegar de um fornecedor de Lisboa a quem haviam sido encomendadas atempadamente. Este impasse somado ao afundar da credibilidade, a olhos de ver, junto do cliente, traziam o Pinto numa pilha de nervos e à beira de um ataque, dessincronizado, quase em estado de choque, completamente fora de si tal a indignação e cólera.
Resolveu, em boa hora e bem, fazer o protesto por escrito; a comparação metafórica que utiliza é de se lhe tirar o chapéu! Se sabiamente o pensa, melhor o escreve em bilhete-postal dos Correios de então, nos seguintes termos:
“Meus Caros Senhores: não sei o que e como dizer deste insólito e condenável atraso no envio da encomenda. Com o correr do tempo, começo a pensar que terei que vos recomendar, direitinhos, ao pai da humanidade, já que alguma leviandade ou desconsideração da vossa parte, estão a querer atingir-me por completo. Levo semanas a fio à espera que chegue a mercadoria que vos pedi. Ao menos, um pedido de desculpas com explicação plausível da delonga. Sou vosso cliente de longa data e, até ao presente, nunca houve de parte a parte o mais pequeno melindre ou contratempo na entrega atempada de encomendas. Desta vez, com tanta demora e silêncio, Vossas Excelências passaram as marcas do tolerável e do "fair play" que sempre tiveram.
Direi mesmo: é mais fácil espetar um prego de cabeça para baixo que entender a orgânica dos vossos serviços. Assina Afredo Pinto.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Marcelino Pão e Vinho

Marcelino Pão e Vinho

As lágrimas derramadas em louvor do comovente filme Marcelino Pão e Vinho, passaram a cloreto de sódio, andará por cinquenta pares de equinócios.
Pablito Calvo o pequeno actor de oito anos de idade, que personificou o lendário Marcelino no filme Marcelino, pan y vino de 1955, do realizador húngaro exilado em Espanha Ladislao Vajda, baseado no romance com o mesmo nome e escrito por José María Sánchez Silva, deixou marcas indeléveis no disco duro da infância de todos aqueles pertencentes a essa geração. A história, que o citado livro recauchutou e adoptou à época, diga-se em abono da verdade, é uma lenda que remonta ao período medieval e que foi englobada num volume de contos por Afonso O Sábio (Alfonso X, 23 Novembro 1221 – 4 Abril 1284) Rei de Castela e Leão.
O enredo do citado filme tinha todos os ingredientes para um sucesso de bilheteira e para que um pranto de emoção passasse a fasquia exigida ao mais puro "cristalzinho japonês" na expressão lacrimal.
A história de Marcelino Pão e Vinho poderia ter tido várias versões perfeitamente verosímeis, isto é, a ficção a tocar a realidade.
Podemos especular que, na versão A, Marcelino teria sido abandonado, por quem o pariu, à porta do Mosteiro, com a clara intenção e a lucidez de quem quer evitar a todo o custo entregá-lo à roda onde, seguramente, teria tido um porvir bem menos brilhante e incerto apesar da sua premonitória prodigiosidade. Na versão B, poderia ter sido encaminhado para uma qualquer casa pia onde deveria suar as estopinhas e, também, não ir longe... Na versão C, estar destinado a colheita de órgãos, ou dador (...) de órgãos (...). Na versão D, ir desta para melhor..., por falta de cuidados sanitários, e aí, sem apelo nem agravo, Pablito Calvo teria perdido a oportunidade de ficar para a história. Na versão E, poderia ter dado um marginal psicopata e guião do filme Kalifornia, aqui personificado por Brad Pitt.
Na versão F, a do filme, Marcelino Pão e Vinho retrata a vida de uma criança órfã de pai e mãe, que após a morte dos progenitores é abandonada à porta do mosteiro onde viria, depois de várias tentativas recheadas de piedosas artimanhas e de peripécias de adopção, a ser criado por frades (doze, ao todo…), e onde desofusca sobre a vida espiritual, sobre a luz que vem do céu, sobre a vida de Jesus Cristo, sobre a vida do céu na terra, sobre Deus. Mais uma vez se fez jus ao refrão “ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão por baixo” … Mais ainda, este pequeno órfão viria a revelar-se um fazedor de milagres: Marcelino tornar-se-á o protagonista de um milagre que iria transformar a pacata vida daquele pueblo espanhol onde ocorreu a história, num verdadeiro reboliço.
O destino é irónico. Na vida real, este actor prodígio, Pablito Calvo, bem cedo mandou as câmaras de filmar às urtigas. Arrecadou fama e mimo, licenciou-se em Engenharia Industrial e passou a dedicar-se a negócios como empresário, envolvido em actividades imobiliárias e hoteleiras na cidade de Torrevieja, na costa alicantina de Espanha, no mais recôndito silêncio do anonimato e privacidade. Afirmava não sentir saudades dos tempos de actor, talvez porque o único filme em que teve verdadeiro êxito ter sido o que aqui relembramos. Pablito Calvo faleceu aos 50 anos por rotura de aneurisma cerebrovascular, em 2 de Janeiro de 2000.
Adiante. O filme a que me reporto contou-nos a pungente história de um neno que está só neste mundo tendo como únicos sócios os frades do mosteiro; pelo menos alegres, mas nem para as solas de D. Camilo (…). Marcelino era uma criança normal: salta-pocinhas, soltava puns com ternura, era traquinas, desobediente, brincalhão, imaginativo (inventou um amigo Manuel com quem brincava), fazia partidas e cagava-se a rir com as suas consequências; divertia-se a topar caga-lumes. Como tal, conseguiu dar a volta à vida rotineira e deslavada no mosteiro, que por tal, mais o incentivava à descoberta e estudo do desconhecido. Mais, conseguiu dar cores alegres ao ambiente cinzento do mosteiro, e aos frades; além de flatos e incontinência urinária, provocava-lhes um sentimento de alegria e alheamento que, isso sim, só D. Camilo poderia produzir…
Marcelino tinha na massa do sangue os genes da curiosidade e, como toda a criança normal adorava espreitar e coscuvilhar o desconhecido: à aventura! Resumidamente, naquele mosteiro havia uma espécie de sótão para onde eram levadas, amontoadas e guardadas coisas antigas dos frades e do próprio mosteiro. Um belo dia Marcelino nas suas andanças investigacionais, em total desobediência ao perfeito do mosteiro, um crápula, subiu ao sótão e por lá andou à coca com olhar de pássaro, até se deparar com uma enorme e por ali abandonada e esquecida imagem de Jesus Cristo pregado na cruz; o garoto ficou admirado com aquela figura ali, ao pó, solitária e esquecida de um santo homem, filho de Deus, como lhe haviam predicado os frades. Esse encontro tão extraordinário quanto revelador; a magia da imagem de Jesus pregado no madeiro, criaram, metaforicamente falando, um alçapão que a todo o instante, irreprimivelmente, lhe acicatava a vontade de se deixar cair. Daí em diante passa sempre a visitar aquele sótão para ver aquela encantadora e magnética imagem... Certa vez Marcelino, por forte impulso empático, levou consigo uns restos de comida (côdea de pão e vinho) da parca alimentação que lhe ofereciam no mosteiro, até ao sótão; com um olhar meigo e puro aproximou-se da imagem e estendeu-lhe e braço, num gesto impregnado de imaculabilidade e inocência próprias de uma criança, oferecendo a côdea do pão à imagem de Jesus... Logo a seguir a este gesto de dádiva, aquela estátua antes estática e inerte, estende o braço até ao pão, e toma-o da mão de Marcelino.
Jesus aceitaria, assim, a oferta e a conversa com o garoto, iniciando-se uma forte amizade e empatia entre ambos. Como recompensa ao carinho dispensado pela criança, Jesus iria levar Marcelino ao encontro da mãe, no céu. Mas, com roubo continuado de comida, Marcelino acabaria por expor os seus actos furtivos aos monges, que passaram a vigiá-lo e a segui-lo. Quando os monges entraram no sótão, depararam com Cristo que amparava nos braços o menino que parecia dormir para todo o sempre. Perplexos com o inusitado da cena e com a intensa luz que dela imanava, a tocar o sublime, crêem, os monges, que terão ocorrido milagres.
O resto está no filme.

Já de si, Marcelino é onomasticamente giro! Depois o enredo: um recém nascido abandonado à porta dum mosteiro onde viria a ser acolhido e criado por 12 monges. Ainda a atmosfera de religiosidade omnipresente, e a ingenuidade e comportamentos pueris expressos nas atitudes e brincadeiras dos intervenientes.
O filme acabado de citar foi exibido, naquele tempo de 1955, no já desaparecido Cine-Parque de Chaves – sala de espectáculos da cidade, mesmo ao lado do elegante Café Comercial, também no baú das memórias ainda que remoçado com o mesmo nome, mas com perda referencial, onde nos intervalos das projecções, coincidindo com a troca de bobine na máquina de projecção, se aproveitava para tomar uma bebida quente no inverno e fria no verão; ou um copo de vinho que estava sempre à temperatura recomendável -. Este Cine-Parque, viveu algum tempo sob o tecto patrimonial de familiares de Vila Verde da Raia, e emanava um cheiro ambiental que lembrava a essência do volfrâmio em estado puro; foi demolido e substituído pelo Cine Teatro, este com um aroma indisfarçável de terracota.
O "trinta e cinco milímetros", que recordamos, de longa-metragem, suponho, puxou o sentimento às gentes do concelho. E, suspeito, terá atravessado bons corações à escala planetária, mormente aos latinos e afro-latino-americanos.
A bilheteira esgotou a venda de bilhetes e as portas do cinema abriram-se a um formigueiro humano que veio ao encontro daquele garoto carismático que, no ranking social, nem sequer almejava o estatuto de zorro, mas que bulia com o saco lacrimal mais imperturbável. O espaço do “cinema” depressa se revelou exíguo para a multidão. E dificilmente se equilibraria a balança da oferta e da procura, tal a precariedade da oferta face à abundância da demanda. A projecção cinematográfica mobilizou as “cadeiras suplementares” aos Bombeiros "De Baixo" que preenchiam todos os corredores e todos os espaços livres da sala. Enchente só comparável às projecções dos “Dez Mandamentos” e “Ben-ur”; ou algumas “cáboiadas” e os “de capa e espada” que faziam, a miúdo, uma lustrosa casa!
Ainda há tempo e espaço para lembrar a enchente que aqui teve lugar a quando da vinda do “General sem medo” – Humberto Delgado -, Maio de 1958, na campanha e disputa eleitoral com o candidato do regime Américo Tomás, donde se extrai do discurso: «Todos nós, cidadãos pacíficos duma candidatura pacífica, queremos pacificamente conquistar a paz. Mas os esbirros do governo, como têm visto, andam a chamar-nos subversivos nos jornais e a tratar-nos na via pública como malfeitores. Ninguém sabe, portanto, minhas senhoras e meus senhores, onde isto pode ir ter. Há uma coisa, porém, que quero jurar aqui. Eu estou pronto a morrer pela liberdade!», e eu também, diga-se. Disse ainda o General, nesta cidade e na mesma altura, sobre Salazar: “obviamente demito-o”. Humberto Delgado, como todos sabem, morreu assassinado, juntamente com a sua secretária e companheira Arajarir Campos, às mãos da PIDE em Fevereiro de 1965.Voltando ao relato: a geral do cinema ficou literalmente ocupada, melhor dizendo apinhada por gente ultra-sensível ao drama e, coincidentemente, a de mais fracas posses. Haviam entrado “furando portas” indiferentes à autoridade consubstanciada nos porteiros, que, aliás, ponderaram em afrouxar, e a meu ver bem, a carga autoritária para que estavam mandatados, face à avalancha de peregrinos que, em catadupa, se acotovelavam, rédea e tigre à solta (…), afim de não perderem um milímetro da histórica exibição. Nem mesmo Popey, o porteiro de estatura atarracada, a quem só faltava o cachimbo de sabugo de milho, para sósia perfeito daquela personagem clássica dos desenhos animados, que se tinha preparado e regalado com suculenta pratada de grelos, se atreveu a manifestações de arrogância ou poses truculentas; só lisura para com um público mais forte que Brutus na investida.
Apagadas as luzes, em sequencia fading, a ansiedade foi progressivamente dando lugar à emoção e a rostos emocionados.
Pese, embora, a seriedade do drama, pontualmente e não sei porque, foi sendo a sessão entrecortada por um risinho soluçante, nervoso, contido e surdo; disperso. Contudo, havia um local na plateia, a que poderíamos chamar epicentro do rumor, onde o ambiente contrastava entre a discórdia e a galhofa, em animado coro, antevendo-se duas ou três causas para o ocorrido. Da análise feita posteriormente, à luz do dia por comentadores abalizados e peritos na matéria, concluiu-se que só poderia ser um traque, por que?! Primeiro porque se houvesse roubo de lugar, apalpadela ou lugar para filho da mãe, teria havido porrada de criar bicho, ou mesmo mortes; segundo porque a ocorrência de qualquer coisa grave não dava azo a riso, mas gritos de pânico, e tudo em pantanas. Preto no branco, é fácil e seguro chegar à conclusão que daquele epicentro só poderia ter havido expulsão de substância volátil com expressão sonora, mesmo que disfarçada por tosse ou qualquer outro tique mistificador. Foi assim que, impetuosamente, “há um” que não se aguenta nas estribeiras e desata às gargalhadas que alastram como pólvora, com ondas de choque a alastrar em todas as direcções; convulsivamente até ao engasgo, semeando o caos. Como nos intervalos não arredavam pé temendo a sentença: quem vai ao vento (...) e nem sequer se deslocavam aos lavabos, nas emergências fisiológicas, é fácil adivinhar as repercussões inerentes a tais atitudes repressivas. Os lendários e polivalentes funcionários dessa Casa, alguns ainda vivos, contam os inúmeros protestos de classe (notáveis da urbe) com que foram confrontados. Mas o protesto mais veemente, salpicado de impropérios vernáculos com semântica a preceito do contexto, vieram, sobretudo, dos ocupantes da primeira fila da plateia, para onde corria livremente e proveniente da geral, um fluido filiforme em movimento serpentiforme, para cá e para lá, inicialmente em pára e arranca, ziguezagueando, à descoberta do leito futuro, numa imitação criativa de “rua direita”, seguindo aqui a pendente natural do soalho à procura do fosso da orquestra.
Fim

sábado, 26 de setembro de 2009

Carta a Miguel Torga

Meu Caro Adolfo:

É da mais elementar cortesia e elegância começar por recordar o convívio em atmosfera cultural, tão profícuo, ocorrido aquando da sua última e já saudosa visita às Termas de Chaves.
Posto isto, tomo a liberdade de informar que referenciei a sua consulta de otorrinolaringologia aos pacientes de que, sumariamente, lhe havia falado no referido convívio em Aqua Flavia : os lusitanos, também conhecidos, paternalista e ternamente por Tugas.
Em detalhe, trata-se de um grupo de indivíduos maioritariamente caucasianos, de "sex ratio" equilibrado, sem aparente predominância numérica entre ambos, com alguma flutuação estatística pela recorrência frequente à imigração, com idades compreendidas entre os 4 e os 84 anos.
A idade aparente dos referidos indivíduos é sensivelmente sobreponível à idade real. Ostentam soberba no sotaque, que se vai diferenciando, como o que ocorre com a paisagem, quer se vá de Miranda do Douro a Vila Real de Santo António quer de Pitões das Júnias a Sagres, não esquecendo o Portugal Insular que gozam aqui de estatuto próprio. Pronúncia à parte, são senhores de discurso rápido mas esvaziado. Quanto à caracterização psicológica, a esmagadora maioria orienta o comportamento de forma idiossincrática e caracteriológica, onde expressões como: “é assim…, é como é…, ou cada um é como cada qual”, fazem escola. Revelam-se relativamente bem orientados no espaço, mas com deficiente orientação temporal. Expressam um “fenótipo” que exibe um indisfarçável efeito de classe, com acentuada desigualdade de género.
A salientar a elevada prevalência de factores de risco para doença coronária, entre outras enfermidades.
Ao Exame Objectivo revelam-se ciclotímicos, bipolares, dualistas e ambivalentes, sem estigmas aparentes de clã. Revelam uma sofreguidão pelo pequeno poder comparável à apetência do suíno pela haptoglobulina do sangue, homólogo e/ou heterólogo.
Um grupo manifesta sialorreia pelo que cospe muito para o lado; outro grupo, não menos importante sofre de xerostomia, talvez por muito assobiar, à mistura com grande carga de ansiedade. Apresentam sinais de hipoacusia, aparentemente congénita, “atípica”. Alternam períodos de perda total da acuidade para a generalidade dos estímulos auditivos, com paroxismos de surdez selectiva. Associam ainda certo grau de miopia, patologia já inculcada por Saramago em "ensaio sobre a cegueira". Aos referidos pacientes foi-lhes feito um electrocardiograma para despiste da síndroma do “QT longo congénita”, com ênfase na variedade cardioauditiva (ou síndroma de Jervelle Lage-Nielsen), que se herda com carácter autossómico recessivo, como é do seu conhecimento.
O restante exame físico considerou-se nos limites da normalidade.
Do “processo clínico” constam muitos exames complementares de diagnóstico e uma ou outra consulta médica: ora com o Dr. Knock, ora com algum aprendiz de feiticeiro, ora no serviço de urgência hospitalar. À data da consulta não se encontravam sob qualquer regime terapêutico nem foi, até então, instituído qualquer tratamento, na perspectiva de que o colega o fará, se pertinente.
Excluídas as síndromas de Jervelle Lage-Nielsen e de Romano-Ward, agradecia que o meu querido e distinto Adolfo se empenhasse no tratamento da disfunção auditiva aos referidos enfermos.
É minha convicção que, para além da melhoria significativa na qualidade de vida que individualmente lhes será proporcionada, é por demais evidente que a recuperação funcional dos mesmos indivíduos terá reflexos tanto imediatos como a médio e longo prazo, evitando de forma previsível o engrossar de consequências funestas para o Serviço Nacional de Saúde já bem chupado e depauperado pelos custos em crescendo: com muitos "cães a morder nas canelas" e "o cão de lata ao rabo" que chocalha em todo o canto e esquina que o SNS é financeiramente insustentável e, pari e passu, o vai "rilhando" paulatinamente até à roptura.
Recordar-se-á de me haver comentado de que tem tido, nos últimos 50 anos, uma epopeia ciclópica para explicar-lhes e tentar convencer os referidos pacientes, de que a água de um rio não passa duas vezes pelo mesmo leito ou que todas as coisas estão ligada entre si, de modo que não poderão agitar uma flor sem perturbar uma estrela.
Sei, caro Adolfo, que se tem empenhado até ao limite das suas forças físicas e intelectuais em defesa da promoção sócio-cultural desta gente das "quinas", hipotecando-se, que nem condestável, ao benefício da dúvida de que é possível, sem subversão de categorias sociais, mas por imperativo ético, moral e até constitucional (pelo menos por enquanto...), dar-lhes um confortável escalão social, versus aceitar a ideia de que dar instrumentos de progresso aquém não está (ou não quer estar...dizem) preparado para os receber, por forma a acompanhar a esteira (melhor seria a crista) da onda onde surfam os cidadãos mais avisados, é, dito em português pouco suave, dar pérolas a porcos (…) ou, em dito popular: "lavar o focinho a porcos, as orelhas a burros, pregar a padres e converter judeus, é tempo perdido”.
Para concluir, Meu caro Adolfo, quero aproveitar também este relatório clínico, para lhe pedir parecer quanto à mensagem “o que fazer”, mais concretamente, quanto aos guidelines, perdoe-me o estrangeirismo, isto é, a metodologia que o médico consultor deva seguir ao socorrer estes pacientes, sempre e quando houver factores de risco para a saúde dos próprios, para a saúde pública, para a sociedade e para o ambiente.

Post Scriptum: estou a reler o livro “das coisas simples”, de Garcia de Orta. E, já que falamos de ilustres filhos de Esculápio, queria dizer-lhe caro Adolfo, que também me associei ao Cântico: “Homenagem a Miguel Torga". Na circunstância levei-lhe pão centeio de forno comunitário, tanto do seu agrado; com azeite.




Com os meus melhores cumprimentos
Tonidril

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Jerry

A terra do Tio Sam onde medra - ou, pelo menos, medrou - o "sonho americano", tem acicatado incursões de pobres, crentes e outra gente dos cinco continentes, ao culto da grandeza, glória e poder. Estes condimentos têm adubado com grande estardalhaço o imaginário dos caucasianos, nomeadamente dos europeus - o meu incluído -, desde a descoberta da América pelo seu descobridor oficial: Cristóvão Colombo. A epopeia dos "Pilgrims Fathers" que zarparam de Plymouth, Inglaterra, abordo do Mayflower (quem não conhece esta nau!) e do Speedwell rumo à Virgínia, foi imitada por grandes levas de emigrantes desta “península ocidental da Eurásia”, particularmente a partir de 1607, para colonização da América do Norte. New York, The Big Apple, "The City that never sleeps" dá o céu, a terra, o mar e três vinténs, aos caprichos de visitantes e turistas que a procurem, ensimesmados na descoberta ou busca do Novo Mundo ou do El Dorado. As aventuras de Bony and Clyde, Al Capone, Lucky Luciano, ust! A Cosa Nostra... Os guetos de polacos, de irlandeses, de chineses, de judeus. Negros: um caso à parte. O Vietnam. Lay-offs. Sindicatos e Feministas. Ku Klux Klan. A NASA e a ida à lua. Hippies. Cowboys, Índios e Gringos. Marlboro. FBI, etc, etc, etc, tudo gongos à curiosidade irreprimível do Velho Mundo.
O calendário que assinala o rascunho deste conto vagabundo tem a marca do tempo em que pairava ainda, conturbado e a preto e branco, o espectro ameaçador da "Guerra-Fria" e da “Cortina de Ferro”. Transcorria uma década do terramoto provocado por Nikita Khrushchev, que tendo descalçado o sapato, bateu com ele na mesa, forte e feio, em plena sessão da Assembleia-Geral da ONU, que decorreu em Nova Iorque a 12 de Outubro de 1960.
No início da década de setenta, com a Lei Seca há muito abolida, em pleno bairro que viu nascer Woody Allen, “nas barbas” da polícia da alfândega que patrulhava o cais marítimo comercial de Brooklyn, brincava-se à candonga com garrafões de aguardente, bagaço do melhor. Voavam em arco, arremedando um exímio salto à vara, por cima da alta cerca de arame que circundava o cais, sendo recebidos no exterior por cuidadosos e musculados braços da “building construction", que os agarravam com todo o carinho, como de “Little Babies” se tratasse… Mas prontos a dar o fora, a fazer lume na estrada, à mínima suspeita de descoberta ou perseguição, em "Harley Davidson", por polícias de giro. O que é óbvio é óbvio, contudo deixo claro que essa aguardente se destinava a aquecer o corpo e a alma de compatriotas, emigrantes, que aí procuravam ganha pão e pé de meia para regressar e viver os anos sobrantes no cantinho “abençoado (…!)” de onde zarparam. Aí, em Brooklyn, se prometeu aos mesmos emigrantes contrabandear pistolas dentro de carcaças de animais transportadas em câmara frigorífica, para que os emigrantes brancos não tivessem medo dos negros que acabavam de se emancipar, e utilizavam, já, os mesmos transportes públicos que haviam sido privilégio de brancos. Aí, em Brooklyn, festejaram-se o Santo António e o São João com bacalhau, pimentos e batatas a murro, no tombadilho do cargueiro Horta (Carregadores Açorianos), engalanado e iluminado por gambiarras a cores e bandeirinhas. Fica a lembrança de uma grande mesa corrida decorada e servida por meia dúzia de tripulantes a outros tantos emigrantes: veio um do massachussas (Massachusetts), veio outro de canérica (Connecticut); de West Side chegaram os compadres Joaquim Pereira (Jack) e Manuel Barros (Manel Prosa). Jerry, convidado daqueles, veio do Bronx. Honestamente (ou por ignorância...) não estou a ver Manuel Barros com um ego tão inchado e um porte tão altivo, muito menos palanfrório e prosápia, que merecesse o epíteto de Prosa; o povo tem destas coisas... A um tempo em que Prosa frequentava com assiduidade a casa de pasto “Km 10” em Vilela do Tâmega, religiosamente ao domingo à hora de merenda para o pratinho de dobrada e vinho morangueiro, houve quem tivesse notado profundas alterações na maneira como passou a encarar a vida, bem diferente daquela que outrora e com Aurora havia dado a conhecer aos amigos. O coração de Prosa era uma chaga viva, um passarinho que definhava em gaiola de suplícios: não resistia à partida e ao afastamento da amada, nem aos ferimentos infligidos ao seu coração pela dor da separação, da saudade e do vazio da ausência. A saga de Romeu e Julieta repetia-se aí com todo o drama. As paixões arrancariam Manel Prosa à pacatez de Samaiões, para seguir, que nem Ícaro, a loxodrómica dos aeroplanos da TAP, a norte do Mar dos Sargaços, e desembarcar no aeroporto quenédi (Kennedy) onde Aurora Lisboa o esperaria de braços abertos e com o coração mais rápido que o de um Hamster. Prosa trocaria, definitivamente, o selim do garboso cavalo de seu tio, padre Daniel, por um banco de Carocha Volkswagen (isto é: feno por gasolina) com que descia a Broadway de Manhattan e subia a Fifth Avenue do mesmo bairro, deslumbrado com tudo em que a vista pousava. Aí, Grande Maça, onde o pudor e as virtudes não chegavam para proibir ou silenciar filmes hardcore ou striptease com cobras à mistura. “Big Apple”! I love this city! Saudades das idas a Greenwich Village: Blues, Jazz & Country: “My Father's Moustache”. Recordações do Radio City. É neste ambiente caro a Herman Melville, penitenciária de Jack London e berço de Henry Miller que tive conhecimento do protagonista desta estória: um Senhor chamado Jerry, apresentado por Manel Prosa e o seu compadre Jack. Isto a um continente de distância do famoso rato da parelha Tom & Jerry. Tão pouco parecenças com o humorista nova-iorquino Jerome Allen "Jerry" Seinfeld. O que relato não é fábula. É pois um conto não ficcionista, quando muito burlesco. Ocorrido numa altura em que ainda as malogradas torres gémeas não tinham roubado ao céu todo o volume que lhes viria a caber, depois de acabada a obra.
Jerry Tadeus Serafin Lutoslawski, nascera nos Estados Unidos da América, mas corria-lhe sangue polaco, fresco. Balançava, ainda, no ramo ascendente da curva da vida, a atingir o patamar. Trabalhava numa fábrica onde tinha e sentia a protecção do filho do patrão, seu amigo desde a infância e nascidos no mesmo bairro nova-iorquino. Amizade que lhe garantia a manutenção do emprego, já que era flagrante, recorrente e constada a sua baixa produtividade laboral, no seio de um tecido empresarial exigente. “I’ll be back”, era a frase mais ouvida pelos camaradas de trabalho, estes sim “workaholics”. Nem sequer se dava ao luxo de deixar o boné no local de trabalho, para que um ou outro companheiro pudesse sugerir piedosamente, que Jerry andaria por perto. Bom, bebia demais. Com todas as consequências que deixo à reflexão de moralistas e polícia de costumes. Em casa as coisas também não corriam lá muito bem. Frequentemente a companheira dava à sola, por manifesta incompatibilidade de relação; e alguma porrada em dias de overdose! Jerry iniciava sempre o pequeno-almoço com duas a três cervejas; ao longo do dia carradas de canecas de Guinness, pelo menos...
Jerry estava, então, num período de reconciliação com a ex-mulher e companheira de sempre: cama, mesa e pucarinho, e regressavam de visita a um casal amigo que morava no”Ironbund” de Newark. Weekend, aperaltado com gravata e brilhantina, ainda que ligeiramente amarrotado no seu todo, sentado ao volante de um Buick de 1928 usado mas com saúde satisfatória, graças aos cuidados da clínica de mecânico amigo e competente. Um pequeno Rockeffeler, pensava-se, nesse fim-de-semana. A “ideia” começava a tentar sem apelo nem agravo a mona de Jerry. Tentou parar uma ou duas vezes pelo caminho para reabastecer, preventivamente, de petrol, tendo tido a desaprovação da esposa que estava atenta ao ponteiro do combustível. Como o período era de reconciliação e pesava-lhe o passado cheio de “busez” (bebedeiras) e outras cenas pouco edificantes, foi aguentando a fúria da sede e da ressaca, mantendo-se cordato. Ia chupando salt water taffies (rebuçados de água salgada) e dava-se a cantarolar “King of the Road” ("Rei da Estrada", canção de Roger Miller, de 1964), na tentativa de enganar o vício que crescia sem dó nem piedade. Estava a atingir o clímax da síndroma da abstinência, pelo que pôs em marcha um plano redentor. O anoitecer apareceu cedo, com céu fechado e escuro a anunciar queda de neve eminente. Tão pouco o bafo das águas do rio Hudson temperava a atmosfera e o ambiente da cidade que nunca dorme, de frias que estavam as águas. Era já escuro e o frio da noite de Inverno começava a fazer-se sentir pelo que ligou o ar condicionado, dando-lhe a máxima temperatura, sem dar nas vistas. Estava montada uma atmosfera de estufa, bem ao jeito dos seus propósitos. Com a temperatura no interior da limusina, que nem borralho, disse à ex-mulher: - “Estou muito preocupado com o aquecimento do motor, não sei o que se está a passar” -, - “Realmente isto está de assar; é melhor pararmos na berma da estrada, e dás-lhe uma espreitadela”- sugeriu ingénua e prudentemente a esposa, que, além do mais, não lia a informação do termóstato da chofage. Ainda a paciente senhora não tinha acabado de falar já Jerry accionava luzes de emergência e pousava a patola no travão disposto a parar. Encostou à direita, logo que pode. Desengatou a patilha de abertura do Capô e saiu. Com o capô levantado, mais o ambiente nocturno, foi de gatas à mala do carro, emborcou sofregamente duas cervejas de um folgo, e regressou de gatas ao motor. Aí chegado e aconchegado por duas bazucas Guiness, disse em voz alta - “Já está bom!” -. Fechou o capô. Entrou no carro, sentou-se, ligou o motor; calibrou a temperatura do ar condicionado e arrancou, sorridente (...) - “Que achas disto, Jerry?” - Perguntou a esposa, - "O radiador estava seco; atestei-o, de momento; já podemos ir” -. E lá foram!
On the road againJust can't wait to get on the road againThe life I love is makin' music with my friendsAnd I can't wait to get on the road againOn the road again
... Willie Nelson

segunda-feira, 20 de julho de 2009

ALUNAGEM

Alunagem

Entre muitos amigos que tive, e tenho, recordo o Zé Pedro Pinto de Freitas, de Boticas. Zé Pedro fora dispensado do serviço militar por antecedentes de primoinfecção, sem sequelas físicas, diga-se de passagem, mas de grande impacto psicológico para ele. Era vulgar vê-lo distraidamente a percutir a sua caixa torácica com a ponta dos dedos sobre um dedo da outra mão apoiado sobre a região do peito a explorar, como método de diagnóstico, ou de exclusão, de "cavernas", imitando o clínico que lhe diagnosticou e tratou esse padecimento: Doutor Náná Videira. Como corolário da “tuberculose” livrou-se da preparação e mobilização para a Guerra Colonial Portuguesa em África.
Pinto de Freitas, testemunha deste relato, acoitava-se, então, no Porto, após ter desistido do curso de medicina de que fora inicialmente brilhante aluno. Esta tomada de decisão condenou-o a uma vida de forçada pacatez, bem oposta a todas as suas fantasias, que lhe fustigavam constantemente os componentes do sistema límbico, enquanto acordado e, muito provavelmente, na fase onírica que deveria ser longa.
Era Primavera e corria o ano da graça de 1970. Os dias arrastavam-se lenta e imperturbavelmente, sem sobressaltos, teimosamente de esperança. A essa data, a minha morada principal situava-se no Porto
Encontrámo-nos, como quase sempre, fortuitamente, algures no Porto, à noite, após o jantar. Depois de duas falas sobre tudo e sobre nada, convidámo-nos a aconchegar o estômago com um caldinho verde com migas, servido em malga, seguido de um pratinho de tripas, no restaurante Transmontano, junto à Praça dos Poveiros.
Meia-noite. Entrámos, sentámo-nos e encomendámos as ditas vísceras, ex libris da culinária da Invicta. Relativamente perto de nós, sentavam-se a uma mesa três pessoas, saboreando os respectivos "finos”.
Andariam pelos sessenta anos: uma senhora e dois cavalheiros. O sotaque era tripeiro e só um dos três é que tinha direito à palavra: o Jorge. A senhora, Isménia, assim se chamava, era delgadita e vestia um casaco de peles, bem ao estilo de coelho do monte. Tinha cabelo alourado, parecendo esconder as cãs que a impiedosa marcha do tempo queria anunciar.
Com respeito à nossa mesa, tudo decorria normalmente entre nós os dois que íamos desfiando a conversa ao sabor dos desejos, dos gostos e da amizade, degustando um ou outro “négus”, à espera da gostosa dobradinha. Talvez pela empatia que a nossa convivialidade estivesse a despertar, talvez porque na outra mesa o Jorge tivesse monopolizado a oratória sem emprestar a palavra aos demais, a senhora prendeu-se à nossa presença e pediu para se sentar à nossa mesa, o que teve a nossa aprovação.
A partir dessa altura os papéis alteraram-se. A senhora Isménia, tomou as rédeas da conversa e nós calámo-nos. A fala da senhora era a expressão da mágoa e o queixume do silêncio a que fora imposta naquela noite. Recordo-me que o tema da outra mesa era a alunagem. Relacionava-se com a Apollo 11, a primeira missão tripulada a pousar na Lua, tendo então ficado célebre a frase dita pelo seu comandante, o astronauta Neil Armstrong ao pisar a superfície Lunar em 20 de Julho de 1969: “Este é um pequeno passo para um homem, mas um salto gigantesco para a humanidade”. Jorge, (personagem identificado pela senhora como um ilustre causídico do Porto, com escritório na rua Santa Catarina) dizia então para o seu interlocutor (identificado como taxista da urbe tripeira, fiel amigo e companheiro de route, que frequentemente amparava o Jorge até à porta de casa), "já te disse, isso da alunagem é uma coisa como outra qualquer, fazem disso uma coisa do carago, como só alguns fossem capazes de fazê-lo”. O outro olhava o Jorge com um ar tanto confuso quanto espantado, até porque tinha visto toda a reportagem da Apollo 11 na televisão. "Repito", disse o Jorge, “ir à lua, ou alunagem, como lhe queiram chamar, é uma coisa simples: cada um aluna como gosta e como pode, sempre que pode. Eu, por exemplo, alunei ali naquela puta...! E agora!” Nessa altura, a senhora Isménia levantou-se parecendo querer reparar o agravo. O salto alcantilado de um dos coçados sapatos de pele de cobra não lhe suportou correctamente o peso, porque mal colado. Parte da sua cerveja derramou-se na nossa mesa.
Mesmo assim, disse em tom de desagravo, bem ao jeito do Mar da Tranquilidade daquela noite: "Jorge não te admito isso!...
Pediu-nos que a levássemos a casa o que fizemos cavalheirescamente.

terça-feira, 30 de junho de 2009

O Anão de Xabregas

Nick Nack, com 119 cm de altura – há liliputianos mais baixos – lutou com resistência contra 007 da série James Bond em "O Homem da Pistola de Ouro" de Guy Hamilton (1974); acabou derrotado e, alegoricamente, "de cana" dentro de uma maleta – no filme, claro. Suicidou-se (na vida... real) em 1993, aparentemente por culpa de um tal Ricardo Montalban, por razões alheias a esta crónica.
O Anão de Xabregas, personagem alfacinha com escassos quatro pés de estatura, também perdeu (neste caso a feijões...) contra Zeca Monteiro da série "Friends Never Died", com quem lutou até ao limite do tolerável, na heroica e abnegada tentativa de aguentar ou anular a pressão psicológica da presença do referido Zeca Monteiro, em circunstâncias que tiveram lugar no Coliseu dos Recreios de Lisboa e que adiante se descrevem. Como complemento de informação será pertinente lembrar, que seria fisicamente impossível ao Anão vencer um veterano e medalhado combatente da Guerra Colonial Portuguesa na Guiné: Zeca Monteiro. A reconciliação, sem abraço (...) e sem perdas nem ganhos, – empatados, se mais percetível – terá sido possível através de diálogo franco e transparente entre Zeca e o Anão: - "Não vou contigo aos figos; não vou contigo à merda! Pátáti-pátátá! Tic-tac, três alqueires!" Choca-aí!


No micro universo do Circo sobrevive uma figura a que poderemos chamar de palhaço-saltimbanco, personagem mais bem definida no plural, já que quase sempre atua em grupo. O agrupamento de palhaços-saltimbancos diferencia-se da família de palhaços principais de que são exemplo: Tété e Rabanete, Tété e Caridade, Pollo y Pollito, etc.). Estes também são conhecidos por Os do perlimpimpim e ocupam o ponto alto da arte circense.

Várias gerações de Palhaços têm vindo a fazer a distinção entre: O Pobre, com o rosto maquilhado a cores vivas, calçando sapatolas grandes, calças largueironas, hirtos pelos nas pernas, maiores que pregos caibrais que lhe furam as meias, andar à pato, desajeitado, luvas com dedos muito compridos, e ainda, a omnipresente “batata” vermelha a esconder o nariz; O Rico que maquilha o rosto de branco – claro, calça sapato branco-polido, bem-posto e bem-falante. Às vezes, esta família dá acolhimento a mais cómicos Pobres.

A miudagem delira com as brincadeiras e as trapalhices destes artistas de cara pintada, com os seus números e com as estampilhas que dão e levam uns dos outros, tão bem simuladas pelo estalido de palmas; em contraste com o silêncio de cortar da respiração e o arrepio, quando o olhar, a medo, se fixa lá no alto da tenda do circo, sempre à espera que acabe em bem, a temerária atuação dos homens e mulheres do trapézio, ou do homem-bala.

Os saltimbancos, nem são pobres, nem ricos, nem remediados… Talvez pobres diabos! Uns desastrados! Uns desajeitados! Uns trampolineiros! Uns trapalhões! Bom! Estou a ser bastante redutor e até injusto. Há neles um pouco de tudo: empenho, dádiva, virtude e sacrifício: aprendizes de prestidigitadores, acrobatas, engolidores de fogo, lança-chamas, saltadores, bailarinos, cantores, etc. Nos circos modernos: Royal, Cardinali, Chen, Monumental, Mundial de Moscovo, de Mónaco, Du Soleil, etc., estes artistas saltadores preenchem habitualmente os tempos mortos entre as atuações, nomeadamente: quando é necessário montar ou desmontar estruturas que servem de suporte ou proteção a um determinado desempenho. Talvez por isso sejam desajeitados, ao terem de misturar-se e confundir-se com os "técnicos" que armam e desarmam essas estruturas.

O Anão de Xabregas, fazia parte deste escol de fazedores de riso e alegrias e, no seu caso, com responsabilidades acrescidas: era o elemento estruturante do grupo, o mister e, simultaneamente, o garante de um público entretido e refém da sua criatividade pantomineira. Para isso, tinha que medir rigorosa e previamente as consequências da sua performance, já que, só por si, a sua estatura tanto podia resultar em benefício, como em rotundo desastre, quer físico, quer psicológico, face ao vexame que o público lhe poderia tributar se as coisas dessem para o torto. Os saltimbancos recorrem à improvisação e fazem depender da leitura que a cada momento fazem do ambiente, os desenvolvimentos da sua actuação. Mas nunca dispensam a vassoura!
Conhecemos a grata figura do Anão no Coliseu dos Recreios de Lisboa, e posteriormente, acompanhámo-lo uma ou outra vez a caminho de Xabregas, no elétrico da "CARREIRA Nº 3 - POÇO DO BISPO - ARCO DO CEGO", de regresso a casa.
Aqui recordamos o único desaire de que temos memória em toda a trajectória profissional deste dedicado e talentoso comediante:

Com rufo de tambores, olhos assombrados e cabelos arrepiados, tinha acabado em apoteose a temerária exibição, “Salto Mortal”, da família Águias Humanas”, trapezistas voadores da Companhia de Circo. É neste oxigénio de suspense que uma súbita aura, seguida de temporário episódio de amnésia, bate à porta da memória do Anão, assacada à presença do espetador Zeca Monteiro.
Vale a pena, entretanto, aludir aos três aprazíveis lazeres na vida de Zeca Monteiro: O circo - está com a mão na massa –, a boa mesa – frango de churrasco…- e futebol - ligações ferrenhas ao Benfica. Foi um Doutor na indústria do desporto rei, não permitindo opiniões de curiosos no debate: “O assunto é sério e só entra quem sabe o que está a dizer!”, advertia, então. A única frase profana que se lhe conheceu, perscrutados os sinais para prognóstico do jogo com início iminente, foi comentar em sussurro aos “sócios”de tertúlia: –“Todos os jogadores, de ambos os lados, se estão a benzer… Vão empatar!!!”
Estávamos na época 1986-87. João Arnaldo Vilarelho, sportinguista, entrou insidiosamente no território de Zeca Monteiro e disse: - “Zeca, Chaves zero, Benfica zero! – “Ah!” – exclamou Monteiro, a desculpar a ironia do ataque, não fora ele de Vila Frade. Podia e devia a provocação de João Arnaldo ter ficado pela amostra, isto é, pelo cartão amarelo; até porque Zeca Monteiro seguia de perto o raciocínio frio e consequente de Agata Cristie, de longa data, o que lhe aguçava o discurso. Vilarelho não se conteve, ou não ponderou a complacência tática de Monteiro, e rematou mais forte: – “Sporting sete, Benfica um! E já lá vai o tempo dos cinco violinos…”. Zás! Cartão vermelho! Toma que é em serviço! Monteiro, sentiu uma onda gélida a subir-lhe a espinha e alegrias tristes a descerem no abdómen. Defendeu o livre direto e estalou o verniz e o vernáculo. Arriou a giga com o que de pior havia aprendido na Rua dos Gatos! Qual Quim Barreiros!!! que vendaval!: - “Olha, Arnaldo, bufa na cana e vê se os balões estão rotos! – foi a mordaz ordem que proferiu, seguida das referências à mais antiga profissão do mundo, passando por recomendações ao pai da humanidade e arremessos excrementícios, não esquecendo o respetivo esfíncter.

Feita esta breve incursão pelo mundo de Zeca Monteiro, em que pincelámos alguns traços ligeiros do seu perfil, regressemos ao Circo, no caso vertente, primeira fila da bancada do Coliseu dos Recreios, à Rua de Santo Antão, em Lisboa, onde um grupo de amigos, de que Zeca fazia parte, tomou assento, junto à coxia central, passagem obrigatória para o grupo encabeçado pelo Anão de Xabregas, nas suas entradas e saídas de cena.
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Tudo foi correndo às mil maravilhas: aos executantes, às feras e a outros do elenco que se salvaram na Arca de Noé. Nenhuma nuvem agoirenta a pairar por perto, tudo sobre carris. A alegria sobrava, nessa noite.
O ambiente e a técnica circense terão criado uma atmosfera delirante no imaginário de Zeca Monteiro, que, confidenciou posteriormente, despejaram no seu consciente o caleidoscópio da infância e adolescência, prenhe de recordações destes espetáculos.
Os lugares comuns vinham-lhe à memória, como cerejas: Meninos e meninas, senhores e senhoras, admirável público: O maior espetáculo do mundo vai começar...
“Ah! Os rufos (...); os circos... o momento de grande tensão dos “números” arriscados, de vertigem; o clímax, e o chamar de atenção, da incumbência do mestre-de-cerimónias, para a nata de cada exercício! Aliás, já a chegada da caravana era um sobressalto na vida íntima de cada um, e um safanão na pasmaceira do quotidiano coletivo. Meninos e meninas, Senhores e Senhoras, o circo chegou!
- Que tema este! Um arrepio! Até que um batimento seco na caixa punha fim ao rufo e anunciava o fim da acrobacia! Põem-se-me de pé os cabelos de tanta adrenalina!
Aliviado o “suspense”, o agrupamento musical privativo da companhia circense atacava um tema a preceito ao mesmo tempo que o “team” de artistas da “performance” acabada de executar se reconfortava com a ovação carinhosa da assistência, que decalcava o ritmo da peça musical com palmas em aplauso. ...É o circo... que apresenta...
Mas quando se ouvia o serrote afinado de timbre “violinico” do Zéquinha Quintanilha era o delírio! A magia, e um turbilhão de alegria para a garotada. O final reunia toda a família dos artistas, os quais, empunhando as bandeiras representativas das respectivas nacionalidades, davam início a um desfile circular em redor da pista, marcado pelo ritmo da música interpretada por virtuosos executantes, em atitude de reconhecido agradecimento, até desaparecerem para lá das cortinas que tinham guardado, em segredo, a surpresa dos “números”. Que diria Jaques Prevert, entre outros? Heminghway? Claro!
Um tango! “Palhaço”! Composição da autoria de Zé Firmino Morais Soares, emprestava a melodia à banda sonora do filme onírico de Zeca Monteiro.
Novamente o vozeirão do mestre-de-cerimónias:
Senhoras e senhores! Meninos e meninas! Na pista deste Circo, para alegria de todos, em especial dos mais pequenos, chegou o momento do riso ao nosso espetáculo!
Quintanilha Mendonça, “Palhaço pobre” que ria e chorava à mercê dos tempos e das histórias que contava, colou-se à mente de Zeca Monteiro que nem chicla.
O vibrato do serrote (marca avião) deste lendário fazedor de riso, quase arrancava uma lágrima furtiva à nostalgia de Zeca Monteiro, não fosse a presença, no tempo certo, do ar e da sonoridade militaristas dum trombone da banda do circo, a dar-lhe stamina.
Quanto ao prazer da mesa, Zeca Monteiro dizia sempre "presente" à convocatória que Lula da Silva fazia "à brigada de sócios" para eventos pantagruélicos, que, invariavelmente, terminavam com outros não menos lúdicos, e, com franqueza, de mijar a rir!
É assim que, da responsabilidade dos frangos confeccionados e ingeridos na Casa do mesmo nome, restaurante na zona dos Restauradores onde Zeca Monteiro estivera a confraternizar com a referida "brigada" de amigos, acometido por irreprimível flatulência, mais do que por premeditado comportamento de atormentada víscera oca, ou por erro de alquimia, Zeca Monteiro sentiu e consentiu, paulatinamente, a fuga de radicais voláteis pelo epónimo colon, até ao fim de linha.
Quintanilha tocava vários instrumentos convencionais, de sopro e cordas além do acordeão, e não convencionais, com destaque para o serrote, em partituras clássicas, e bomba de encher pneus, em partituras ligeiras.
A alegria estonteante com que recordou as variações que Quintanilha extraía dos instrumentos de sopro foi tal, que o imitou, desferindo nas barbas do Anão, que coincidentemente observava da coxia a atividade na pista, um potente acorde dissonante. E logo quando o Anão preparava o plano para animar o intervalo que separava o desmontar do “Salto Mortal” dos trapezistas voadores, e o montar das grades da jaula e restante parafernália de segurança para a exibição do número das feras – corpulentos leões da Abissínia – depois de já terem atuado os crocodilos do Nilo, serpentes do Amazonas, tigres da Malásia, ursos polares, e até um hipopótamo e um camelo, deixando aquele caudilho de saltimbancos à beira de um ataque de nervos e de outras manifestações fisiológicas, desorientado para o restante espetáculo.
Zeca Monteiro a cagar-se de riso, claro! Até porque o Anão fez várias tentativas para sair pelo local de entrada, não o tendo conseguido ao esbarrar com a presença lacrimejante de riso de Zeca Monteiro; denunciadora de atitudes de baixo quilate social. O Anão de Xabregas e o seu grupo de saltimbancos maltrapilhos, acabaram por sair, banhados em lágrimas por outra porta, já que assim evitariam um alto concorrente de nonsence.
Daí até ao fim do espetáculo mais não fez que cirandar por entre as atuações, entrando e saindo a medo e à deriva, tentando exorcizar, de soslaio, o pesadelo hilariante de Zeca Monteiro.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Despedida

DESPEDIDA
Com o peso de setenta e quatro primaveras em ombros, deslavadas, insossas e rascas, a senhora Arminda Honrada continuava analfabeta, ou cega para a leitura da escrita, como contava, com mágoa.
A impressão digital, da responsabilidade do seu dedo indicador da mão esquerda, continuava a única forma de identificação, além do retrato do bilhete de identidade, claro! O dedo indicador da mão direita, mais utilizado nesta função de verificação de pessoa, parecia mais um pequeno pau de vide retorcido e cheio de nós, um trambolho tal a anquilose pela usura das tarefas domésticas, muitas sob intempéries.
Dizia-me, certa tarde, Arminda:
- Olhe; trabalhei toda a vida, desde muito nova. Comecei por servir em casas boas e honestas, de professores. Levantava-me cedo e, quantas vezes, a noite já espreitava a madrugada com a lua a voar bem alto, e ainda passava a ferro, bem de pé; outras vezes, não foram poucas, me dizia a senhora professora quando calhava ir a essa hora ao quarto de banho: -Vai-te deitar, Arminda! já é tarde! - Tinha a obrigação e o zelo à flor da pele; só me encostava depois de tudo pronto e arrumado; sempre fui muito fresnética.
Recordo o respeito e a educação que havia naquele tempo. Hoje; são as raparigas que se atiram a eles (rapazes). Não têm vergonha. Mostram as tetas por tudo e por nada. Bem; tamém as tetas!
Já espigadota, surpreendia-me, a miúdo, a obediência ao mandamento: Crescei e multiplicai-vos!-; a par com alguma concorrência de gineceu, que começava a martelar-me a moleirinha. Sismei: É chegada a altura de me arrumar! Pensar na boda! - que nunca seria de arromba, nem o dote grande coisa.
Carolino fez-me o rente; rascava a asa com olhos meigos. Comá sim todos pimpam (…) Casei-me e tive quatro filhos. Alguns são já reformados. Dantes toda a gente tinha uma porrada de filhos; todos descalços e com saúde; hoje, ainda estão na barriga da mãe e já estão podres ou tolheitos! Só se comem venenos, agora! Tudo era mais puro antigamente! O meu homem bobia muito. Então, aos domingos, era demais: bebia, bebia, bebia… De tarde ia com os bois pró monte, via dois caminhos, e só fazia tontices. Era mau como as cobras e fez-me muitas desfeitas. Ameaçava-me muito e eu não podia dizer nada; boca calada senão caía bernarda. Um temeroso chefe de família! Estas ameaças esmoreceram um tantinho quando os filhos cresceram e lhe começaram a arregalar os olhos até às orelhas. Deus, não dorme (...) Bem, em quem mais poderia mandar Carolino, senão em nós e no gado!...
Carolino já lá está, vai para 18 anos. Bateu a bota rápido. Deus chamou-o e ficou-se como um passarinho. Faz-me alguma falta.
Sabe? - apontando Arminda para as partes vergonhosas - arrumou-se-lhe por baixo! Todo inchado! Morreu, tinha em baixo macho e fêmea inchados (…) assim me disseram no hospital. Carolino esteve duas semanas hospitalizado e mandaram-no de volta para casa, despedido. Regressado a casa, já a pensar no sacramento da extrema-unção, Carolino chamou-me e disse-me: - Arminda, perdoo-te tudo se me perdoares. Se achares bem, chama o Lotário que eu deixo-te tudo que queiras.
Perdoei-lhe mesmo sem a presença do Notário!
“Oh… Que eu viva mais uns aninhos…” - disse, por fim, Arminda Honrada.

Nem sempre a despedida tem este alívio nostálgico, resumido ao engrunhar de lenço branco. Bem pelo contrário: A despedida é, quiçá, o momento que desencadeia o sentimento mais doloroso da vida. A despedida condiciona um estado de alma indescritível e intransmissível.
Sempre presente na diáspora, no infortúnio e na morte.
A omnipresente lágrima, a fio, ou furtiva ao canto do olho.
Alguma da música mais elaborada foi composta para contextualizar e dar a maior solenidade a este ambiente taciturno, emprestando-lhe uma atmosfera musical de missa funebre: O Requiem (Missa de Requiem). Verdi, entre outros compositores, fê-lo prodigiosa e magistralmente.

Ómega Três, um amigo que Deus tenha, do signo dos peixes, visceralmente traquina, comovia-se facilmente até às lágrimas, quando o encontro lhe trazia à presença gente do peito. Assim aconteceu um dia, aquando da visita de um amigo comum, em Lérida, Espanha; paragem onde havia feito as pazes com o trabalho, como agente de restauração, e peito (...) ao corpo e à alma de uma jovem que amara até ao último suspiro.
Por instantes, de memória já perdida no tempo e no espaço, Ómega Três entendeu avivar nesse encontro, entre outros temas aleatoriamente escolhidos, o seguinte:
- Não se me varre da memória a lembrança de Óskar, o Juiz Desembargador amigo de meu primo Rebelde, que acabou carcomido pela doença, transformado num bicho desfigurado da Criação. O cancro deixava-lhe uma barriga magra, escondida em pele de cobra, que pouco pesava aos ossos lambidos de musculo e, por tal, poucos vermes medrariam, tão consumida a carne estava.
O Juiz pertencia a uma família de cineastas, com muitos e célebres Óskares no seu clã. O Desembargador, que nunca acreditara em Deus - assim o dizia - não foi, por isso, a Fátima ou ao fim do mundo para recuperar o corpo que se perdia rapidamente a favor de nada, num apelo patético à vida. Talvez a sua heresia, (sabe-se lá!...) o tenha tão duramente castigado na carne - terão dito aqueles que acreditam ou defendem que este mundo e esta vida são plataformas de sofrimento e penitência, e não de prazer (…). E que a inteligência humana é a responsável por tudo isto (…) - dirão outros sábios e outros videntes (…) - havendo encomendas e fatos para todos os gostos!
Se a condição humana vive do sonho e da experimentação, e se feitos nós à imagem e semelhança de Deus, podemos, na esteira de Einstein, ser um sonho que Deus sonha, e o nosso futuro muito relativo.
Mas, mesmo consciente da guilhotina que descia predadora e inclemente em marcha lenta sobre o seu magro pescoço, Óskar mantinha-se de pé e botas postas.
As vilezas dos homens, as traições e dureza dos homens, as injustiças dos homens, a agonia da carne e o silêncio omnipresente de Deus: massacres, saques, guerras, batalhas, vitórias, derrotas, violência, vilanagem, prepotência, crueldade, mentira, bastardia, sobranceria, perversidade, ruínas, opulência, escravatura, incêndios, e todas as marcas da bestialidade, conhecidos de Oskar, não seriam obstáculo à reconciliação com a Divindade. Não seria o pendor aterrador da antonomásia de "Todo Poderoso" que faria esse milagre. Não. Nem troca por troca. Bastava que Ele deixasse escapar um murmúrio de impotência perante a dor e o sofrimento, e sussurrasse que, na” criação humana”, não previra defeitos na génese, organização e qualidade do código genético dos humanos e, como intenção bastante, o advento de reparar erros existentes em matéria tão complexa, como é a condição humana. Sem falsificações nem contrafações.
Aí, de ateu a gnóstico era um pulinho. E a reconciliação ao virar da esquina.
A realidade nua e crua com que Óskar se confrontava, levava-o a desejar morrer. Já! Do coração! Que é morte santa (…)
Como só os santos têm direito a este requinte no instante da morte, a esposa vivia apavorada com a sentença a que os deuses tinham condenado o marido, e tudo faria para regenerar a saúde de Oskar e resgatá-lo ao impossível.
Suplicou-lhe: “Oskar!, já que os médicos te desenganaram quanto ao tempo de vida que terás, deixa-me ao menos ouvir a opinião do curandeiro de Tresmundes: Rato Sabido.
“Se isso te tranquiliza… venha ele!”, -disse-lhe Oskar-.
A luminária de Tresmundes (residente em três mundos, como facilmente se deduz do topónimo) aparecera, e o Jurista explicou a este bruxo o que o ralava, e esperou o parecer do constado "milagreiro", que não tardou o diagnóstico e disse: “Você o que tem é uma hidropisia Constantinopla cuja qual lhe provoca uma solidão que o leva às campânulas da morte!” “Estás satisfeita?” - perguntou o Juiz-, “Estou” - respondeu a esposa resignada em compaixão e lugubridade. “Também eu!... Até que a morte nos separe, Maria" - Disse o Juiz.
O Meritíssimo corria agora ininterruptamente a final. A esposa guardava os últimos pedacinhos de vida do amado, revelando, a posteriori, esse retrato de eterna recordação: “Para o fim" - dizia a esposa - "já mal abria os olhos. Estava, então, a dar-lhe de almoçar e disse-lhe: “Óskar! abre os olhos, parece que já não gostas de mim!”. Ele entreabriu-me os olhos; dei-lhe um beijinho e segredei-lhe: vês! Estás tão bonito! Fechou os olhos, deixou de respirar, ficou muito quieto e nunca mais respondeu.

A morte é um dos temperos mais apetitosos do drama. Desde sempre. Sê-lo-á sempre, presumo.

Em Covas de Barroso, as criaturas nascem e morrem como em qualquer outra parte do mundo. Aí, onde havia rezas para quase tudo e crenças em quase tudo, qualquer homenagem feita a essas tradições cairá no goto, ainda que respigue alguma alteração ou mesmo adulteração pela usura dos tempos. Peço desculpa se me julgarem juiz em causa própria, e perdoar-me-ão, suplico, se aqui descobrirem algum pecado! Até porque este relato já pertence à tradição oral.
Naquele tempo, pelo menos, o dia-a-dia das gentes de Covas era diferente doutros lugares e doutras paragens, na maneira de estar e de ser, e de sentir. Ainda o passado se esgueira à esquina e com ele se esfumam os códigos de conduta sociais e comunitários que vestiam uma roupagem muito própria e muito sentida. Quem procurar uma costela do Portugal primitivo, justiceiro que nem revolucionário, dicotómico de agreste e selvagem a bondosamente ingénuo, vá nostalgicamente a Terras de Barroso. Lá encontrará o último reduto desse micro universo com atmosfera própria. O vento que sopra na cordilheira mais setentrional Gerês, e o fumo que ainda se esgueira e escurece algumas chaminés locais, teimam em mostrar o passado ao presente.
Mas do que de genuíno e diferente falo é de funeral. De exéquias. De mortalha. De enterro, como aí se diz. Da partida para o além. Para o desconhecido, ou para o Céu! Sem limusinas, sem cortejo automóvel, sem funerária de marca, sem grinaldas: quando muito carreta. Uma ou outra mulher carpideira, de luto pesado; fitas negras à volta das mangas dos casacos; uma ou outra flor. E a solidariedade de quatro braços musculados pelo trabalho no duro, e outras tantas mãos, empenhados no ritual de levarem a campo-santo quem, felizmente, ainda tem onde cair morto.
Os dias de hoje, com todos os motores de busca de conhecimento ou informação que a Internet nos proporciona, não identificam forma idêntica ou parecida com aquela que vos conto, em matéria fúnebre.
Oxalá, o ancestral costume de fazer parar o féretro junto à porta de casa do defunto, quando a caminho da eufemisticamente chamada última morada, após missa de corpo presente, que vigorou nessas paragens se tenha conservado. E resista a ir pró maneta!...
Esta paragem destinava-se a uma última palavra de despedida ou expressão de sentimento do ente mais próximo, junto à habitação que lhes deu abrigo e conforto ao longo da vida.
O coração da senhora Brígida Bemposta silenciou-se sem apelo nem agravo e o tum-tá que nunca dera tréguas ao cansaço, deixou definitivamente de se ouvir. Recebera, sem a mínima reserva, a extrema-unção, ungida com óleo em nome do Senhor, e demais bênçãos da da Santa Madre Igreja dedicadas à cerimónia do momento. Todo o apoio de familiares e amigos. O marido, Senhor da Casa, arrastava-se já, anquilosado por graves artroses das ancas, pelo que não pode ir ao ofício de corpo presente, ficando em casa, sentado à janela ao jeito de namoradeira, à espera do ataúde. Quando o caixão e a ocupante defunta se aproximaram daquela que fora a sua casa durante toda a sua vida, o reverendo mandou parar o cortejo fúnebre. Como sempre, perguntou se alguém da família, à laia de despedida, quereria dizer algo, alguma elegia, à defunta. O esposo levantou-se a custo, com o apoio das muletas e disse a choramingar: “Olha, Maria, sempre foste boa rapariga, boa patroa e boa mãe. Não sei para onde vais nem onde ficarás" - dizia erguendo a cabeça e o olhar para o azul frio de um céu distante e mudo na resposta às angústias e melancolia de Catarino; e continuou: - "mas vás para onde fores uma coisa te digo:"- tomando o peso aos genitais (grães em léxico autóctone) com a mão esquerda - "lá não encontrarás um par de quilhões, como este que aqui deixas". “Siga, siga” - ordenou o padre!...

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Rebelde

Rebelde
I capitulo
Com tanta comida de farmácia que emborco, qualquer dia já não me perguntam quantos anos tenho, mas quantos comprimidos tomo. Logo agora, capaz de fazer jus à expressão dos soldados ingleses que vieram dar uma mãozinha aos portugueses e por cá ficaram, no seguimento das invasões francesas (e do vinho dos mortos!...), ao verem comer um português abastado: “He eats like a friar”.
Ao que um homem chega! Não, não ficou para as calendas gregas um tempo em que uma senha de caderneta valia o conforto de uma refeição quente. Na Calçada do Combro ao Largo do Calhariz, bem no cimo do Elevador da Bica. “Arganas” de bacalhau, pão, lambreta ou copo de três das vindimas das encostas do Poço do Bispo: produção Camilo Alves. Em festividades ou apelos ao sentimento, saía da cartola um regenerador jantar no Zé Duarte, no Caramanchão da Ajuda ou em casa da Chinha (Mamma, ti ricordiamo tanto!), iluste economista, que nos recebia com pompa, circunstância e vinho Periquita!
-“ La buena vida és cara. La hay barata; pêro no és vida”-, dava então com Rebelde a filosofar.
Rebelde, a musa desta crónica, é membro GOF (Grande Oriente Flaviense) há, pelo menos, setecentas e quarenta e quatro luas novas, no nosso calendário. A mesma longevidade pelo calendário chinês, que é lunissolar: setecentas e quarenta e quatro lunações (à data deste registo). Sem nunca ter saído do plano da órbita. Sem nunca ter encalhado na maré. A emoção em frente às grades; o coração atrás das grades, nas algemas; sempre ao lado de “David”, contra “Golias”!... Sol lucet Omnibus.
Cavalheiro de estatura meã, caucasiano, confiante, jovial, olho guicho, impecável, para quem o mundo se resume à família (Avô, Mãe e Irmã), amigos, ius e alguns pecadilhos pelo caminho.
Apóstolo da amizade, tem sido solidário quanto baste, guardando ciosamente um espólio de afinidades: registo, idade, escola, percurso, ideias, gostos e sabores, que pretende ancorar em abada própria, até ao juízo final.
Tem sido modesto relativamente à maior parte das necessidades da existência, contando-se pelos dedos as excepções, que a seu tempo serão, aqui, lembradas.
Dos prazeres da boa mesa tem sido peregrino infatigável. E da qualidade do néctar, só doença grave trocará as voltas às microscópicas campânulas gustativas de Rebelde, desde o Alfrocheiro ao Vital.
Só aqui, será a fotografia a tinto e branco. Porque a preto e branco tem sido a sua consciência, que dá à estampa um rosto de vida calma e equilibrada, a quem o espírito nunca terá pedido para ser um homem diferente. De olhos nem sempre enxutos, mas nunca caídos no chão, olha em frente sem envieses.
Talvez por bom garfo, talvez por cavalgar toda a mesa, Rebelde tinha um amigo, Betacaroteno, que dava a alma e três vinténs pelo Grupo Desportivo de Chaves. O fervor clubístico manifestava-se, pelo menos, na presença assídua com que engrossava a claque do desportivo em jogos fora de casa “até os comemos”- era o grito de fé na vitória desejada. Betacaroteno não dispensava um pudim de sobremesa, ou mesmo como confortante moleta de entrada, em substituição ou complemento de caldo artesão. Na lógica do já cá canta, ou de homem prevenido, Betacaroteno levava a bordo, na mala do carro, pudim caseiro, reserva de confiança, para qualquer eventualidade. Aliás a escolha dos restaurantes era condicionada à existência e qualidade de pudim.
Quando um dia Rebelde lhe perguntou: - “Betacaroteno porque é que gosta tanto de pudim?”- respondeu -“Ia gostar de carne gorda, não!...”-
Sempre dado a tertúlias. A cultura, a política e as artes espreitava-as sempre que podia. Recordo-o como co-autor da peça que ajudou a encenar:”Lolita faz teatro”, ao melhor estilo shakespeariano.
O privilégio da convivialidade com os maiores gabirus, os melhores malandros, a nata dos galferros e os piores lapantins: Pécora, Coquiac e Coquiong, Peixe, Chicharo, Tóninho das Pedras, “Bintoito”, Dr. Paco Ovelha, Professor Galinha, mestre Nená Bicha, entre outros, foi uma “mais valia” para a vida no duro, vulgo profissional, e de relação. Nená Bicha te-lo-á seduzido para as “ciências” quando lhe definiu a matemática como “a calote esférica da raiz quadrada humana”. Em vão. O destino não lhe perdoaria a traição aos genes da jurisprudência, sentindo, desde moçoilo, no seu íntimo, a aspiração de vir um dia a ser um campeão de causas justas.
Não sei se à revelia dos seus pares, ou provocação dos mesmos, sei, isso sim, que se assume muito mais técnico de direito que produtor de discursos empolgantes, tão ao gosto de quem diz que letras são tretas e as procura usar como de (sedutora…) matemática se tratasse!...
Gostava de jogar a bilharda, o pião, o fito, a malha, a sueca e, regularmente, na lotaria. Do malhão, foi objector de consciência. Músculo por músculo só carne de barroso, do rajo, dizia! Nem mesmo o ZêZê das argolas, de quem era amigo, o cativou. ZêZê dedicava-se à musculação nos ganchos do Matadouro Municipal , por entre a fiada de rezes que aí esticavam penduradas, para através da hipertrofia muscular exibir uma anatomia apelativa, invejável e temida, provando, se necessário, que não era merda nenhum.
Como capitão da areia, Rebelde tem satisfatória tarimba da praia da galinheira, ao açude.
Na azenha do Agapito capava o rio, de margem a margem, com pedras lascadas, e ria-se, sempre e quando os ciganos não acampavam na margem oposta. Aí terá tido algumas aventuras, quer como protagonista, quer como mirone activo de algumas desgraças corporais. Hoje dá explicações pormenorizadas do funcionamento da azenha, que respigam até de arte de catedrático.
Era dado às rotações do vinil: escutava Regianni, Fausto, Brel, Godinho, Adriano, Vinicius, Zeca; no pico da intelectualidade: o Modern Jazz Quartet e Billie Holiday, ou Lady Day, como gostava de tratá-la. Deu uma ou outra concessão ao Nelson Ned em noites de poço da morte... No íntimo, no íntimo deste notável causídico, estará Erik Satie com toda a sua irreverência musical!...
Discreto, intimista, foi e é pé de dança estruturado, métrico, medido e comedido, poupando-se a espirais estonteantes e conflito de espaço.
Gravata, nem com molho de tomate: é adorno elitista e dispensável. E aperta a mão em dias de festa.
Talvez depois de reflectida análise, ou bem de acutilante improviso intelectual, sondou-me pela calada da noite: - “tu sabes qual é a pessoa mais convencida que eu conheço?, mesmo de notoriedade zero?”- ao que eu respondi com a mesma acutilância: -“Narciso, suponho”. – “Não, Eu…génio” –, respondeu!
Defensor abespinhado do bico de pena que requer lume brando para verter no manuscrito reflexões amadurecidas, esgrima argumentos a favor do bloguismo plumitivo, continuando teluricamente arreigado à função da “caneta permanente”, barricando-se em defesa deste meio de comunicação e da missiva, como anátemas contra o grande Satã ao serviço da colonização global: o computador. Aprecia, sim, um bom naco poético e sandes de boa prosa.
Nunca foi dado a exibições de gás na tábua, nem a colaças rebaixadas, que trocava por “dois cavalos”- agora “alfarrodele”-, que iam a todo lado: Coimbra, Porto e Lisboa, sem querer menosprezar os mais recônditos lugarejos ou portos de abrigo onde a hospitalidade permitisse mostrar a bandeira de cortesia e, porque não, a barriga de misérias...
Advoga mesmo: deixa para amanhã o que não puderes fazer hoje.
Até porque os anos vêm vindo para cá e nós vamos indo para lá!... Aqui renegando ou esconjurando os genes da avó paterna que, aos 94 anos, dizia: “que Deus nos mate com trabalhos”!...
Respiga nele a influência da Bíblia, ou do convívio com o Padre Fernando, em plena campanha cívica, acantonados em Covas de Barroso, para todo o sempre: “O coração calmo é a vida do organismo carnal”.
“Temos que nos organizar”, tem sido a oração e o apeadeiro a que recorre o eco da consciência, ao não querer perder o comboio do tempo.
Rebelde fez parte do “casting” no filme “porteiro da noite” tendo ganho um Óscar. È um namoradeiro de estrelas, gostando de as apreciar até que o sol as tornasse ocultas e, cansado de as olhar, procurasse a horizontal para continuar a sonhá-las.
Nos viçosos anos do sonho e da loucura, de tenra idade, portanto, quando o espírito da liberdade o orientava em roda livre, foi compulsivamente eleito atirador especial, depois de dedicada aplicação em artes marciais que o promoveram a especialista em minas e armadilhas e condutor de homens, entre outras responsabilidades. Conhecia só a operação de dividir, bem ao contrário de major Vladimir que só somava ou multiplicava.
Herói (não gosta do elogio) da guerra colonial em Angola, na mítica Quim Pedro e Nanbuangongo, paragens onde o calendário se expunha deliberadamente ao contrário para marcar, só, os dias que faltavam para o regresso. Temerário no porte e atitude (em teatro de guerra, só!...), nunca precisou de golpes de Ninja para persuadir ou derrotar o adversário. Utilizou sempre a dissuasão verbal para toda a contenda.
Rebelde não terá agradado aos magnatas de Hollywood, mas terá inspirado Francis Ford Coppola no magistral Apocalipse Now, a cores. Mas, ao contrário de Coppola que foi pressionado pelo Pentágono a corrigir o guião para não mostrar a derrota no Vietnam, a troco de facilidades na utilização de material bélico de borla, nas filmagens, Rebelde, com guião de Manuel Feliz, exigiu a derrota a preto e branco.

domingo, 29 de março de 2009

O Taxista de Miranda

Hermínio Augusto Marcolino, de sessenta e quatro anos de idade, tinha tocado a campainha da morte. Era um barco naufragado que agora dava à costa acossado sem apelo nem agravo, por um destino efémero e deslavado, aqui onde o mar acaba e o imponderável começa!...
Hermínio encontrava-se numa unidade de cuidados intensivos de hospital, ligado às máquinas, acamado e a recuperar de uma emergência médica que o tinha levado gravemente doente, encharcado e sem fôlego, ao serviço de urgência hospitalar, supostamente devido a renúncia de emborcar mãos cheias de pastilhas a troco de mais uns anos de penitência e insossos. A ressonância do velho anátema “perde-se a vida num segundo”, pairava aí com toda a veemência.
Não custa acreditar que Hermínio, teria gostado dos sabores do descomprometimento e da boa saúde como condimentos para gozo de merecida reforma, após longos anos de “pica-boi” como motorista da empresa de transporte de passageiros Cabanelas. Seguramente que estava muito pouco agradecido pelo estatuto de enfermo, na total dependência de terceiros. Os Entrudos passam e as doenças aparecem. Hermínio estava agora mais frágil que as lembranças oníricas de Jorge Palma!...
Por inerência de profissão, Marcolino conhecera bem o nordeste transmontano, as suas gentes e as suas vias, em tempo de infindável jogo de curva e contracurva.
Vencia agora a fase mais crítica da doença e recebia os cuidados de enfermagem na pessoa do enfermeiro António João Torrão.
João Torrão que é natural de Miranda do Douro, iniciava, então, nos alvores da manhã, cuidados de higiene ao ressuscitado paciente Marcolino, a quem insignes doutores acabavam de dar autorização para levante. Boas novas lhe anunciava o dedicado zelador; estava melhor e podia agora refastelar-se periodicamente no cadeirão donde, sentado, recebia as reconfortantes imagens da TVI!... No decurso dos contactos regulares que ambos travaram entre si neste âmbito, o enfermeiro João reconheceu o Sr. Hermínio, proclamando-se desde logo, mirandês dos quatro costados, o que deu origem a que, bem cedo, sem fio condutor, fossem relembrando usos e costumes locais, saltando do inconsciente de cada um os aspectos mais interessantes. Salpicando os comentários com pauliteiros e gaitas de foles, à mistura, assim foram desfiando uma longa meada de memórias, chegando ao ponto de até do “Marcochito Maldonado Cu de Gesso Cu de Barro” se terem lembrado!
Esta assembleia de factores: motorista de autocarro, Miranda do Douro, conhecimentos e vivências partilhados pelos dois interlocutores, terá puxado à lembrança de ambos a imagem do taxista de Miranda: Tábio, Octávio de baptismo.
Conhecera, eu, alguns Tábios: o da Lareira, o Pedófilo, o Tábinho Olhões, o Ocampo, e outros que fizeram história entre os Romanos.
Este Tábio, pelo que me informaram, fora bem diferente! Impregnado de astral elevado, bem-humorado, amigo do seu amigo, empático, de comoção fácil ao sofrimento alheio, só lhe caia bem o chorar das videiras a partir de Março. Imune à adversidade e à lei de Murphy, granjeou grande notoriedade no planalto mirandês onde não tinha mãos a medir, isto é, não chegava para as encomendas, tal a popularidade. Falava mirandés i pertués. Para mim, este recipiendário é um hino à resistência do canastro humano.
Tábio fora também motorista de autocarros escolares, embora a sua principal actividade tivesse sido dedicada a chofer de praça: empresário com carro de aluguer, como se chamava então, com raio de acção circunscrito ao distrito de Bragança, presumo.
O automóvel que utilizava nesta procura de ganha-pão era sua propriedade, o que, só por si, já intrigava os vizinhos. Onde teria ele arranjado dinheiro para o comprar? Tratava-se de uma limusina antiga de importação, americana, eufemisticamente chamada espadinha, recauchutada, resgatada, algures, à sucata, de fazer inveja aos actuais táxis de Cuba, a brilhar! Nela não faltariam os então omnipresentes adereços: vaso de vidro com flor no remate central dos pára-brisas, donde pendia um rosário com crucifixo oscilante, uma pequena imagem de N. S. Fátima do lado direito do tablier e chapa de residência do proprietário, ao tempo obrigatória, com as fotos dos herdeiros em relevo, e ainda a gravação: Pai pensa em nós (Jaques Brel terá copiado esta imagem para um dos seus filmes).
Tábio morava em Miranda do Douro, não tinha grandes posses, mas tinha uma prol a fazer remorder de cobiça qualquer candidato a subsídio de natalidade. A alegria que a sua filharada lhe proporcionava contrastava com os magros proventos que auferia, agarrado ao volante do automóvel, movido pelo desejo único de os criar, e dar-lhes educação e cultura que lhes permitissem ter uma perspectiva do futuro bem mais risonha do que a que lhe tocou em sorte. Uma obsessão constante que o trazia fiel, a um lado, ao amor pelos filhos e apego às origens, e a outro, à necessidade de beber para mitigar a impotência de contrariar a violência da sua sina.
Este mirandês que recordamos era ligeiramente alto e magricelas. A barba mal aparada sempre foi sua marca, e a cor branca desde muito novo lhe enfeitou a cara. De nariz picareta, era vê-lo num fumigar contínuo e permanentemente bêbado como um cacho, não enfiasse ele bagaço em todas as aldeias onde parava.
Os dedos mostravam-se amarelecidos e carregados de lustre pelo efeito da lenta combustão dos “pitilhos” (cigarros sem filtro, conhecidos por mata ratos) enquanto, prensados entre aqueles, aguardavam o regresso à pendência dos seus cauterizados lábios sorventes dos nicotínicos vapores. Era pessoa educada e de bons modos. Nunca o vinho lhe provocou maus fígados. Dos médicos só recebera bons tratos porque falava com eles com se fossem seus irmãos, obrigação que lhe percorria as veias. O destino não quis que engordasse galenos e terá morrido de velho com “oitentas e tais”.
Nunca tivera um acidente sério! Só ameaças, e das tesas!.. Ao menino e ao borracho põe-lhe Deus a mão por baixo!...
Um dia, em Ifanes (Miranda), quando conduzia um autocarro escolar, Tábio, já bem tocado, teve, in extremis, rasgo para parar o autocarro e evitar o acidente; antes de cair, como um tordo, ao chão.
Outra vez, quando conduzia outro autocarro escolar, também a cair de bêbado, seguramente a velocidade reduzida, como era seu hábito, tombou para o lado. Vasco, assim se chamava o passageiro mais velho do referido autocarro, primo do enfermeiro João Torrão, teria os seus 18 anos e já dava explicações de matemática, viajava casualmente no autocarro e presenciou a queda fulminante de Tábio. De imediato saltou para os comandos do autocarro e, depois de o imobilizar, tê-lo-á conduzido até à sua aldeia, Cicouro, deixando Tábio à porta do Calachas (o dono da taberna local), um dos apeadeiros, a partir do qual Tábio continuou a Viagem!...
Como marca mais emblemática deste ás do volante fica esta, registada várias vezes: nas feiras, sobretudo na do Nazo, ou na de Miranda, enquanto esperava pela hora levar os clientes de volta a casa, emborcava copos, uns atrás dos outros. Quando os clientes o procuravam para o regresso, Tábio, já como o aço, pedia-lhes: -metam-me no táxi, por favor-, súplica que tinha pronto atendimento, sem protestos, dúvidas ou receios, dos que em breve seriam por si conduzidos aos respectivos destinos. Já sentado e ao volante do Chrysler, dizia aos passageiros: agora já me podem largar. E lá ia!...de certo com protecção de S.Cristovão, pois nunca se lhe conheceu acidente grave.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Quadrangulanzeiros

Quadrangulanzeiros

A banda dos Quadrazais, bem dito, talvez, banda do caos, ficou famosa à data em que proporcionava um genérico radiofónico ao Rádio Clube Português. A graça e o sucesso vinham-lhe da desafinação que as notas (com)fusas e semifusas emprestavam às suas partituras musicais.
Em gesto de homenagem, não fora eu envergonhado, sugeriria a António Macedo a inclusão desta banda nas “músicas da minha vida”, ou outras ondas que se escapem regularmente da Antena 1.
Com isto quis tão só desfazer qualquer atropelo que o título em epígrafe pudesse fazer à referida banda, ou a mesma banda apagar, por truques de parafonia, o lampião desta crónica.
Esta acrobacia de palavras, pretende ir ao encontro do desenho melódico desse agrupamento musical.
Confesso que sei que o prefácio que acabo de escrever é um drible que faço ao leitor, apostando na narrativa de suspense até ao derradeiro ponto final.
Não falta presunção, claro, com alguma água benta à mistura; tudo o mais é aventura pós Babel.
Àqueles que tenham dúvidas de que a época de oiro do cinema português anda às costas de Maria Matos, António Silva, Maria Neves, Vasco Santana, Milú, Ribeirinho, Laura Alves, Barroso Lopes, Teresa Cabral, Fernando Ribeiro, aconselho-os ver ou rever: “O Pátio das Cantigas” ou “O Costa de O Castelo”, entre outros, recorrentemente passados nos nossos canais televisivos.
Atrevo-me a dizer que caberão no buraco de uma agulha os consumidores compulsivos do pequeno ecrã, que não tenham gravada na retina a cena em que Simplício Costa: O Costa De O Castelo (António Silva), traz para casa um rádio acabado de comprar e demonstra, explicando à curiosidade dos comensais dessa residência nas imediações do Castelo de S. Jorge (na costa do qual, olhando o poente, ficava uma Pensão, não recordo o nome, que me acolheu algumas vezes), como funciona e o porquê de emitir aqueles esquisitos ruídos. Alguém da casa pergunta: “E isto toca?” “Se toca! Liga-se à parede e é uma torneira a deitar música!”

Todas as cidades, vilas ou mesmo aldeias, terão os seus heróis, os seus vilões, os bons, os menos bons e os maus, de estatística grosseiramente proporcional à grandeza do seu universo; muito mais de condicionalismos ou “life events”do que fatalidade genética. Preto no branco: quem nasce torto ou mau, terá que virar as entranhas do avesso à procura de torno que o endireite. Sussurram-me que neste bouquet de recordações, não há torpeza, nem gente reles: augura-se um fim feliz.
Torres Vedras, famosa por ser sede do maior município do Distrito de Lisboa, pelas suas gentes, pela riqueza monumental, pela gastronomia e pelo carnaval, entre outros atractivos, está, como as demais urbes, inexoravelmente marcada por vicissitudes antropológicas e, bem longe de albergar o homem vitruviano.
É nesta Turres Veteres que a família Pinto se perde na contagem implacável da clepsidra. Essa temporalidade que o vento leva, empurrado pela nortada que descola da Praia de Santa Cruz vindo do mar. Esse tempo de memória e saudade, que se esfuma sempre que venta de sudoeste a favor da superfície frontal, fazendo-se anunciar no Casal do Ulmeiro, por assobio de cobra. Aí, no Ulmeiro, ainda canta galo; um cata-vento encimado pelo ex-libris de Barcelos, indiferente ao ruído “sonotone”, produzido por geradores eólicos. À sombra desse negrilho ou olmo (como cá se chama) sobrevive a pá Narvik que algum lapão, na procura dos alísios, terá confiado à hospitalidade dos Bastos. Por acreditar no que poderíamos chamar de instinto e distinto acto conservador, da parte de António Bastos, de orelha à escuta do eco de passos perdidos.
A referência onomástica que aqui faz ninho, tem sido fiel ao mesmo cesto em que sempre pusera os ovos, continuando arreigada ao mesmo comércio, de geração em geração, na referida cidade do Distrito de Lisboa.
Dirijo, desta feita em tom familiar, a pergunta ao meu sabido amigo Toninho Bastos: Torres Vedras deriva do latim, dos Godos, ou também bebe do léxico Turdo? Tema para dissecar no poço do veleiro Tana, ao sabor do Atlântico: fica em agenda.
Com o intuito sábio de não deixar cair o queixo aos clientes, o marketing, outrora propaganda, da actividade comercial dos Pintos poderia recorrer a metáforas, ideias ou expressões lustrosas como as que aleatoriamente dão aqui a cara: “Plano Poupança Reforma (PPR). Face às dificuldades de financiamento da Segurança Social e à possível redução de reforma num futuro próximo, comece desde já a poupar de forma gradual e com o mínimo de sacrifício pessoal para que possa salvaguardar o dia de amanhã”. Ou:
“Sabia que a sua profissão pode dar descontos no seu seguro Automóvel?”. Sendo este anuncio, acreditando na investigação jornalística, o gongo de marketing utilizado por um dos pintos, que lembra: “O aumento da esperança média de vida, a baixa taxa de natalidade e a insuficiência das contribuições para a Segurança Social, porão fim, tudo indica, ao breve sonho de um Estado Providência, capaz de garantir uma aposentação condigna”.
Também se pode ler em vertente bloguista: “Desde 29 de Fevereiro que a Pintos Corretores/Seguros está ao vosso dispor nas novas instalações de Torres Vedras. Poderá assim contar com um novo espaço mais funcional e melhor acessibilidade. O novo escritório fica localizado em local central da cidade, representando mais um passo em busca da “Qualidade superior”.”Pintos Corretores/Seguros. Desde 1945”.
Considerandos à parte, a drogaria fora sempre o ramo do clã, até que a concorrência dos dias de hoje trouxe tal insegurança e insustentabilidade ao negócio, que aleijou irremediavelmente as vendas multiuso que praticava, e obrigou a procurar pouso em novo galho empresarial, como dito antes: Seguros. Sem dúvida, que a aposta estava temperada com olho de pássaro e faro canino em temática muito mais apelativa ao consumo porque imprescindível, qual mal necessário, a um (des)protegido ser humano.
Sem trade mark preferida, representação exclusiva, ou patente pessoal, foram agentes de tudo e de nada. E ainda lhes sobrava tempo para alguma prática filantrópica, procurando apoiar os pacóvios e fraca roupetas nas suas iletracias e demais dificuldades sócioculturais. Aconselhavam e refrescavam o espírito dos clientes com as últimas novidades do desporto, da ciência, da moda e da política.
Bártolo Tristão acabara de entrar na drogaria “Pinto”, à baixa Torriense. Cumprimentou o dono que se barricava atrás do comprido balcão de madeira, com solução de continuidade a uma das extremidades, ao estilo de ponte levadiça, para passagem do pessoal da casa. Foi desfiando pedidos deste e daquele produto, deste e daquele material, até arrebanhar toda a listagem que tinha na cabeça, à mistura com pareceres sobre as últimas jornadas do Sport Clube União Torriense. Enquanto escolhia e conferia a mercadoria, algumas lâmpadas à mistura, foi ouvindo os mais variados comentários e conselhos de Pinto, entre uma bicada e outra… aqui e ali… a este e aquele… a isto e aquilo… como o mundo está mudado… se soubesse o que sei hoje… se fosse mais novo…, um não acabar de ideias que brotavam na justa medida do tempo em que o cliente o ocupava.
Pagou a conta, agradeceu todos os ensinamentos prodigalizados, apertou a mão ao comerciante e, já com um pé na rua em pose queime, voltou a entrar. A curiosidade e a ansiedade davam-lhe um ar de detective a lançar a última pergunta do interrogatório, tendo nesse trejeito perguntado: “Sr. Pinto, afinal que vem a ser isso da electricidade?” Estávamos nos alvores do séc. XX. “Bom, Bártolo” - disse Pinto Remédios, acometido à hora certa, no lugar certo, por invejável dose de inteligência emocional, aspergindo bonomia em atitude empática para as angústias e ansiedade próprias de quem a iletracia sempre bateu à porta, mas com fome de saber- “bom, electricidade é uma espécie de diabanzos que vêm pelos quadrangulanzeiros e, quando chegam à lâmpada fazem” - exemplificando com um estalar de dedos- “pif-páf óh claréquesse!”