quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Natal

NATAL
Mais uma cambalhota no passado a catrapiscar o olho ao presente e ao futuro, que é como quem diz: quem me dera virar o mundo do avesso e reaver alguns retratos que a retina mantém gravados, algures, a um cantinho do hemisfério cerebral direito.
Não me aperalto, deveras, na elocução directa, mas, desta vez, terei que recorrer à narrativa na primeira pessoa, à revelia do colectivo.
Na tela, como sabereis, e porque Deus não prodigalizou em mim tal dom, não dou uma prà caixa. Pintar, quando muito, a macaca. Só passei a Taprobana no desenho geométrico. Quanto às artes do Grafismo ou do Grafito não agarrei o trenó solar, pelo que, imagino, já é tarde. Mas, para que conste, gosto muito de pintura.
Hoje, convidava-vos a apreciar pinturas que evocam, especificamente, a temática “bebedores” ou “jogadores de cartas com o respectivo copinho a vitaminar e a apimentar ideias e actos”, tratada por estrelas do firmamento da paleta e do pincel, do guache, do lápis de carvão e da tinta-da-china (verdade Manel!?), dos quadros a óleo (com significado ambivalente, para alguns...), etc., que nos esbugalham os olhos de delícias. A título de exemplo: “o fado” de José Malhoa, “os bebedores” de Beraud (não confundir com berardo fóke iú, ligado à pintura por via exógena) ou Daumier, sem desprimor para outros pintores ou retratistas, amigos do produto sagrado: vino, até porque, in vino veritas est.
Vão perdoar-me os eméritos Degas, Manet, Picasso ou Vicent van Gogh, autores tão apreciados e estimados, mas que elegeram o absinto, bebida nefanda, como paradigma do pingalho.
Porque me passam nos olhos saudades, o caleidoscópio das inquietações não me deixa seguir um fio condutor único; é mais o combustível que incendeia este ir e vir de pensamentos e vivências afins, nos quais tropeço aqui e ali. Um defeito, entre outros, dos muitos que tenho e de que os amigos se queixam, mas que, suponho, ainda me adornará o esquife no cortejo para New Orleans, mais enfático que grinaldas! E, como caleidoscópio que é, nele, os fragmentos da travessia da vida, tão efémera, diga-se, esforçam-se por estar agradavelmente organizados, a salvo do labirinto do esquecimento.
Não causará, pois, estranheza, que ainda que tenha como pano de fundo “os bebedores”, mesmo assim, escorregue no filme “mundo cão” de Gualtiero Jacopetti a mostrar o que já na nossa geração se ia produzindo do mais inqualificável e gratuito. Passadas cinco décadas, avolumam-se dados de que se refinam as vilezas anteriores. Oremos, para que das cinzas da frustrada cimeira de Copenhaga, fénix faça o milagre de nos incitar a curiosidade de meditar e ajudar a melhorar o ambiente que nos rodeia.
Em desabafo de quem cá anda a prazo, vou por um pantufo quarenta e dois biqueira larga à entrada da chaminé da cozinha, para que o pai natal, o menino Jesus, os reis magos, o santa claus ou outro cappo das fantasias e brinquedos, nos satisfaça, a todos, um ou outro desejo (o meu, confesso, é de vos poder continuar a morder as canelas...) e, sem ofensa, e porque a época o aconselha, convidar-vos a reflexão intimista, sugerindo-vos, como guia espiritual, sem laivos de armadilha, a releitura de “cândido” de Voltaire.
No íntimo, o meu pedir (e sonhar) vai direito ao coração do rei mago Belchior para que, se possível, prorrogue validade ao passaporte deste humilde descendente de Jafé e carimbe o visto "PSA negativo", por mais uns tempos.
Mas, saudosismos à parte e moralidades arredias, a prossecução desta incursão pela memória obriga-me a arregaçar as mangas para reproduzir e emoldurar o quadro “de quem vendeu a vinha para comparar o lagar” … uma figura humana marcante, não dissimulada, que não se dava importância, nem a pedia, um padrão sublime, uma vivencia sentida até às entranhas, que, só recordar, já traz soluços e uma lágrima furtiva. Ponto de ordem. Quando antes evoquei o filme “mundo cão” e Gualtiero Jacopetti, fiz um trocadilho (a que já estais habituados), para fazer a “apologética” de um “mundo são” e lembrar Fausto Copetti, porque o “Já” (de Jacopetti) …lá vai… e o Coppeti, vai indo(…).
O modelo humano para um quase retrato de hoje, recorda o Natal.
Descrevo-o:
Palitinho quase sempre ao canto da boca, mas que, no tempo certo, deslizava entre os lábios que nem malabarista em acto de rola-rola, sem mãos, entre as duas comissuras labiais.
Prisca, onça ou metade de pitilho cortado ao meio, prensado na orelha.
Perfil adequado ao jogador de cartas de taberna e apreciador do calor do sol de inverno, na fase pós-prandial do almoço.
Rural que transporta ao ombro - em jeito porventura herdado "do" assentar praça -, o omnipresente sachinho de cabo comprido, de alvado a tapar o sol, com ou sem orelhas, de extirpar ou não, multiuso: para o cebolo, jardinagem, autodefesa, moleta ou bengala; "tocador" de crias...até para dois dedos de conversa...- não pesa muito e dá descanso aos cotovelos -.
Eis aqui alguém das berças (...), um campónio da velha guarda, pouco ou nada princês, amarrotado no vestir, mas de colete: um castiço, por contraposição ao urbano janota, manga-de-alpaca.
Este sujeito cheio de predicados, sempre pronto a despir a camisa, é o mesmo que convidava em jeito de desafio: «não decilitras?», ou “vai um?”... copo. Nesse convite estava implícita a entrada iminente de Amigos na velha e escura adega, onde a luz só entrava pela porta feita integralmente de madeira, que fechava por aldraba.
Já dentro, o anfitrião dirigia-se para o pipo (ou pipa!), pegava no ubíquo copo, habitualmente de vidro grosso canelado, rodava com perfeccionismo a torneira de madeira, e ouvia-se a onomatopeia:"tchiitchiiiiiii...". Deixava, então, cair de alguma altura "a mais nobre das bebidas", até encher o copo a fazer rosário.
A seguir, com toda a reverência, em ode aos Amigos, dirigia-se ao feixe de luz que teimava em entrar através da porta entreaberta - parecendo querer associar-se ao convívio -, e apreciava a cor e a vida do néctar em contraluz. Aí, num hino à natureza e à criação, soltava já uma cuspidela, tal a alegria de paladar satisfeito, o sorvo adivinhava.
Imagem que seguramente teria sido modelo ao quadro de Franz Halls "O Alegre Bebedor".
Então, com total discordância da ciência enológica, cometia o sacrilégio de beber de um trago o "copo". Como que oferecendo o que de melhor tinha para os Amigos. E, em remate cerimonioso e ritual, afinando a língua em castanholas, soltava um estalido de prazer sentido e partilhado: Pêtááá...ahhh!
Tocados por um ritual inebriante, com imaginação solta, perder-se-iam, os Amigos, noite dentro, em espiral de alegria, nesse espaço cénico comunitário, sob um céu acolhedor, despojado de ornamentos que não fossem essenciais àquela união sem remandiola. O ornamento musical "bota aí"(...), "à capela", soava espontâneo, afinado, cadenciado, com brio, até à fase plateau (...).
Era uma vivência mágica, bela, saborosa. Um verdadeiro fresco de sentimentos a jorrar amizade, humanismo, solidariedade, mesmo sã ingenuidade.