domingo, 18 de janeiro de 2009

Variações sobre um mesmo tema.

O Pára-raios

Alguns acontecimentos, rituais, crenças ou tradições têm a mesma expressão em distintos locais do nosso planeta, embora tenhamos a ideia de que essa ocorrência seja um exclusivo desta ou daquela região, deste ou daquele protagonista.
Estas memórias nascem dessa ubiquidade.
Tive a oportunidade, privilégio, se preferirem, de assistir a um ritual, mistura de praxe e prazer mórbido de brincar com a ingenuidade de quem é novato e em início de carreira, obediente a qualquer ordem emanada de níveis superiores da cadeia de comando.
A bordo do butaneiro Cidla, em pleno Golfo da Biscaia, fazia-se, então, rumo a Roterdão, o porto de mar mais movimentado da Europa, casado com a cidade do mesmo nome: atrativa e acolhedora. Seriam, pois, atributos quanto baste para seduzir embarcadiços à sua visita não houvera a cidade dos seus sonhos, das luzes vermelhas e das montras de meninas: Amesterdão! Le Port de Amsterdam, de Jacques Brel.
Comandante Paião, imediato Batista, radiotelegrafista Viriato, chefe de máquinas Machado, terceiro piloto Âmbar.
A borrasca com surriada de mar de vaga grossa já se fazia anunciar à passagem do Cabo Finisterra, quando nos afastavamos da costa da morte, por uma depressão cavada que fazia o seu percurso para leste, teimosamente interessada em interceptar a nossa proa, ventando fortemente e agoirando forte balanço, mesmo capa, mantendo-nos acordados, compelidos a profanar o canto Gregoriano.
Os dias eram ainda raquíticos e o crepúsculo da tarde estava aí. Começavam então a visualizar-se os primeiros relâmpagos e as ameaças sonoras do martelo de Thor.
Viriato, rádio-operador da estirpe de um George Parker, era um tripulante avisado, experiente e de um profissionalismo sem precedentes, com afinidades para o matraquear da chave de Morse a fazer inveja ao melhor baterista de jazz. Nunca posou com cachimbo; nunca deixou medrar a barba na face magra e luzidia; nunca beberricou mais que um roubado copo de três. Este emblemático tripulante, pendurava na antepara da sua estação de comunicações, voltado para a sua posição habitual de operador radiotelegrafista, um bizarro caixilho de madeira, desalinhado, que emoldurava um enigmático retrato de uma cadeira aparentemente de madeira. Soube, após ter conquistado a sua confiança e amizade, que essa cadeira era a réplica daquela donde o ditador partira os cornos, dizia, quando dela caíra desamparadamente ao chão, atingido por redentora trombose cerebral.
Com a crescente ira dos elementos da natureza, Viriato temia estragos no equipamento que impedissem o fluxo de informações à sua estação de radiocomunicações e, com isso, a perda, vital, de ajuda à navegação e salvaguarda da vida humana no mar. Pediu, em jeito de ordem, ao elo mais fraco: Âmbar, para ir colocar o para raios no mastro do navio, a meia nau. Isto porque, segundo Viriato, era uma tarefa que competia ao terceiro piloto. Âmbar, nem pestanejou, nem recalcitrou. Apenas perguntou: “que tenho que fazer”. “Vai”, disse Viriato educadamente, “à casa da máquina, com cuidado ao descer e ao subir, pede ao chefe (de máquinas) o para raios, trá-lo para o convés, sobe ao mastro e aplica-o no topo. Ponha arnês e tenha cuidado com o balanço”.
Bom, o paciente Âmbar estava agora no convés exercitando hula-hoop e impregnando corpo e mente de adrenalina para subir ao mastro com um saco cheio de matraquilhos com a tara aproximada de 50 quilogramas. Por coincidência, o comandante apareceu na casa do leme para observar o estado do mar e as condições de navegabilidade, presenciando a atitude de Âmbar disposto a cumprir a tarefa de que tinha sido incumbido. Paião, com cara a tope mal dissimulada, perguntou o que é que o terceiro piloto fazia ali no convés com aquela ondulação. Após esfarrapadas explicações, o autor da ordem tentou desdramatizar o quadro com um sorriso maliciosamente envergonhado dizendo: “esta brincadeira não é nada comparada com os tempos das caravelas em que os tripulantes eram mandados pro caralho”, isto é, para o pequeno e penitencioso cesto da gávea. Paião perdoava tudo porque também se divertia, chamou pessoalmente Âmbar, dizendo-lhe para dar a tarefa por terminada, justificando que já não era preciso tal recurso inerente a tácticas de mau tempo, porque a meteorologia melhorava…!
Âmbar, com as entranhas em crescente reboliço e eminente humidade na roupa interior, pese embora o impermeável que vestia, poupou-se à acrobacia tendo, no entanto, que devolver o para raios à casa da máquina, sem o ter aberto, e sem aparente laivo de suspeita.

O Chumbo

A milhas no espaço e no calendário, teve lugar uma aventura parecida. Era tempo de Liceu e de vacas magras. Os grupos organizavam-se por idades, experiência, afinidades e, também, por liderança. A antiguidade era um posto e os fedelhos ambicionavam a fama e as facilidades dos mais espigadotes. Poder ir ao cinema, aos bailes, namorar, eram sentimentos e vontades telúricas dos mais novos, que se iniciavam junto dos seniores para tais aventuras.
Dorindo Ingénuo e Castor Mata Cães, entre outros, estavam na primeira fila da iniciação ao desembaraço e resolução de problemas ou situações prementes.
Mas, nunca é demais lembrar o velho aforismo: é com dinheiro que se compram os melões.
As matérias académicas variavam segundo a orientação do curso do aluno; em termos abrangentes, letras ou ciências. O grupo de alunos em questão estava, por mero acaso, na alínea –agrupamento, assim se chama agora- de ciências, pelo que, obrigatoriamente, teriam que dar a tabela periódica de elementos, da qual, como se sabe, faz parte um metal pesado: o chumbo, bem presente na mente de todos, por outras razões que não são aqui chamadas a capitulo.
O convívio de Ingénuo e Mata Cães com os companheiros mais sabidolas, das conversas que respigavam pró-atividade, dos expedientes por eles concebidos; a ideia de que a necessidade aguça o engenho e que é preciso fazer pela vida, projectavam no imaginário de Dorindo e Castor um estimulo excitatório poderosíssimo que teria consequências, a curto prazo, nas cabeças férteis e ávidas de aventura destes dois noviços.
Preto no branco: “não é com os bolsos cheios de cotão que compras o bilhete pro cinema; para mandares cantar um cego, tens que fazer pela vida...!”
Em teoria tudo era fácil, mas na prática a realidade é dura e crua.
Era início do terceiro período, dias longos; a noite a marcar presença. Após o jantar, no café Comercial, reunia, à volta da mesa, um grupo liderado por Almor, que Ingénio acabava de engrossar.
As conversas que se desfiavam à volta da mesa, criavam um ambiente etéreo de aventura que se adensava com o correr das horas, fazendo a ponte entre o desejo e possibilidade real de compensar as dificuldades. Aí, tão inevitável quanto lógico, Dorindo Ingénuo sentiu-se compelido a perguntar se sobrava alguma tarefa que ele pudesse executar, tendo em conta a resolução de propósitos mais imediatos; ver algum western, entre outros.
Almor sugeriu a Ingénuo: “amanhã, pela calada da noite, podes ir ao cemitério municipal resgatar um caixote com chumbo, de colheita recente, que depois será vendido num dos receptores dedicados a esse negócio”. Dorindo aceitou o repto de por à prova a sua intrepidez bem como, daí, esperar melhor entrosamento no grupo; passagem a um estádio mais idóneo e aplicabilidade material da sua gesta.
Cerca das 23:00 horas, Dorindo dirigiu-se ao cemitério municipal, usou e abusou das habilidades circenses de que fora devoto praticante, e transpôs o gradeamento encimado por pontiagudas lanças ao estilo da centúria romana, indo ao encontro do falado caixote, orientado por um desenho previamente feito no Comercial e uma apetencia indomável de descoberta de tesouro perdido nas mãos de piratas piores que cascavéis enfurecidas. Encontrou o alvo no local previsto, inverteu o salto de dentro para fora do cemitério, nem consigo imaginar as artimanhas usadas para por fora de grades o encaixotado valor, e levou-o ao ombro até ao Café, qual troféu a entregar ao grupo que ai continuava reunido à espera do epílogo desta aventura: passava menos que uma volta de ponteiro da meia-noite.
Aí chegado com a encomenda prometida, pô-la à disposição do grupo. Desceram à cave do Café, abriram o caixote e, de conteúdo, só pedras. O ambiente assumiu um comportamento de estupefacção teatral, tendo Almor feito apelo à sua árvore genealógica e jurado pela alma de antepassado de consanguinidade duvidosa, que não se tratava de um embuste à pessoa de Ingénuo, e que o valioso chumbo tinha lá sido colocado na véspera e, agora, a olhos vistos, objecto de roubo. A expressão facial de Ingénuo, corado que nem o “alegre bebedor” do pintor Frans Hals, era, também, de raiva e impotência, achincalhado até à ignomínia, em exaspero contido. “Dorindo Ingénuo”, disse Almor em tom reflexivo “o olfacto leva-me a presumir que isto é obra de algum abocanhado que deu com a língua nos dentes, ou de algum lobisomen que andará a espiar-nos! "Companheiro,- Almor afagando as costas de Ingénuo- não fiques aperreado com esta contrariedade, afinal levaste a carta a Garcia, e ainda a procissão vai no adro. Grava em tatuagem: quando a sorte não penetra, três ameixas e edecetra."

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Introdução

Entregar à custódia do cais das recordações histórias que nos aqueceram a alma, antes que o esquecimento ou a (senil) idade impeçam os neurónios de organizar o seu registo, é obrigação de quem se tenha sentido confortado pelo calor desse braseiro. Os seus protagonistas, alguns recatados e indolentes polidores de esquinas, outros lafraus e pícaros, outros notáveis da ciência à arte, todos eles cheios de engenho e graça, merecem ser lembrados pelo resplendor que criaram no seu círculo de conhecidos e amigos. As histórias que aqui vão fundear são deles, pelo que são eles os seus naturais e legítimos donos. Pela parte que me toca, tentarei dar-lhes vida e, reconhecidamente, chegar com a ponta dos dedos à ponta dos artelhos, em curvilínea postura de gratidão, pelo cortejo lacrimal que tantas vezes exibimos, sempre que a agenda da sua lembrança se abre. Como o exercício de escrita, e a lisura, nunca provocaram indigestão a ninguém, peço aos literatos que sejam benévolos comigo e deixem vir à luz do dia algumas narrativas inócuas à literatura.