sexta-feira, 24 de abril de 2009

Rebelde

Rebelde
I capitulo
Com tanta comida de farmácia que emborco, qualquer dia já não me perguntam quantos anos tenho, mas quantos comprimidos tomo. Logo agora, capaz de fazer jus à expressão dos soldados ingleses que vieram dar uma mãozinha aos portugueses e por cá ficaram, no seguimento das invasões francesas (e do vinho dos mortos!...), ao verem comer um português abastado: “He eats like a friar”.
Ao que um homem chega! Não, não ficou para as calendas gregas um tempo em que uma senha de caderneta valia o conforto de uma refeição quente. Na Calçada do Combro ao Largo do Calhariz, bem no cimo do Elevador da Bica. “Arganas” de bacalhau, pão, lambreta ou copo de três das vindimas das encostas do Poço do Bispo: produção Camilo Alves. Em festividades ou apelos ao sentimento, saía da cartola um regenerador jantar no Zé Duarte, no Caramanchão da Ajuda ou em casa da Chinha (Mamma, ti ricordiamo tanto!), iluste economista, que nos recebia com pompa, circunstância e vinho Periquita!
-“ La buena vida és cara. La hay barata; pêro no és vida”-, dava então com Rebelde a filosofar.
Rebelde, a musa desta crónica, é membro GOF (Grande Oriente Flaviense) há, pelo menos, setecentas e quarenta e quatro luas novas, no nosso calendário. A mesma longevidade pelo calendário chinês, que é lunissolar: setecentas e quarenta e quatro lunações (à data deste registo). Sem nunca ter saído do plano da órbita. Sem nunca ter encalhado na maré. A emoção em frente às grades; o coração atrás das grades, nas algemas; sempre ao lado de “David”, contra “Golias”!... Sol lucet Omnibus.
Cavalheiro de estatura meã, caucasiano, confiante, jovial, olho guicho, impecável, para quem o mundo se resume à família (Avô, Mãe e Irmã), amigos, ius e alguns pecadilhos pelo caminho.
Apóstolo da amizade, tem sido solidário quanto baste, guardando ciosamente um espólio de afinidades: registo, idade, escola, percurso, ideias, gostos e sabores, que pretende ancorar em abada própria, até ao juízo final.
Tem sido modesto relativamente à maior parte das necessidades da existência, contando-se pelos dedos as excepções, que a seu tempo serão, aqui, lembradas.
Dos prazeres da boa mesa tem sido peregrino infatigável. E da qualidade do néctar, só doença grave trocará as voltas às microscópicas campânulas gustativas de Rebelde, desde o Alfrocheiro ao Vital.
Só aqui, será a fotografia a tinto e branco. Porque a preto e branco tem sido a sua consciência, que dá à estampa um rosto de vida calma e equilibrada, a quem o espírito nunca terá pedido para ser um homem diferente. De olhos nem sempre enxutos, mas nunca caídos no chão, olha em frente sem envieses.
Talvez por bom garfo, talvez por cavalgar toda a mesa, Rebelde tinha um amigo, Betacaroteno, que dava a alma e três vinténs pelo Grupo Desportivo de Chaves. O fervor clubístico manifestava-se, pelo menos, na presença assídua com que engrossava a claque do desportivo em jogos fora de casa “até os comemos”- era o grito de fé na vitória desejada. Betacaroteno não dispensava um pudim de sobremesa, ou mesmo como confortante moleta de entrada, em substituição ou complemento de caldo artesão. Na lógica do já cá canta, ou de homem prevenido, Betacaroteno levava a bordo, na mala do carro, pudim caseiro, reserva de confiança, para qualquer eventualidade. Aliás a escolha dos restaurantes era condicionada à existência e qualidade de pudim.
Quando um dia Rebelde lhe perguntou: - “Betacaroteno porque é que gosta tanto de pudim?”- respondeu -“Ia gostar de carne gorda, não!...”-
Sempre dado a tertúlias. A cultura, a política e as artes espreitava-as sempre que podia. Recordo-o como co-autor da peça que ajudou a encenar:”Lolita faz teatro”, ao melhor estilo shakespeariano.
O privilégio da convivialidade com os maiores gabirus, os melhores malandros, a nata dos galferros e os piores lapantins: Pécora, Coquiac e Coquiong, Peixe, Chicharo, Tóninho das Pedras, “Bintoito”, Dr. Paco Ovelha, Professor Galinha, mestre Nená Bicha, entre outros, foi uma “mais valia” para a vida no duro, vulgo profissional, e de relação. Nená Bicha te-lo-á seduzido para as “ciências” quando lhe definiu a matemática como “a calote esférica da raiz quadrada humana”. Em vão. O destino não lhe perdoaria a traição aos genes da jurisprudência, sentindo, desde moçoilo, no seu íntimo, a aspiração de vir um dia a ser um campeão de causas justas.
Não sei se à revelia dos seus pares, ou provocação dos mesmos, sei, isso sim, que se assume muito mais técnico de direito que produtor de discursos empolgantes, tão ao gosto de quem diz que letras são tretas e as procura usar como de (sedutora…) matemática se tratasse!...
Gostava de jogar a bilharda, o pião, o fito, a malha, a sueca e, regularmente, na lotaria. Do malhão, foi objector de consciência. Músculo por músculo só carne de barroso, do rajo, dizia! Nem mesmo o ZêZê das argolas, de quem era amigo, o cativou. ZêZê dedicava-se à musculação nos ganchos do Matadouro Municipal , por entre a fiada de rezes que aí esticavam penduradas, para através da hipertrofia muscular exibir uma anatomia apelativa, invejável e temida, provando, se necessário, que não era merda nenhum.
Como capitão da areia, Rebelde tem satisfatória tarimba da praia da galinheira, ao açude.
Na azenha do Agapito capava o rio, de margem a margem, com pedras lascadas, e ria-se, sempre e quando os ciganos não acampavam na margem oposta. Aí terá tido algumas aventuras, quer como protagonista, quer como mirone activo de algumas desgraças corporais. Hoje dá explicações pormenorizadas do funcionamento da azenha, que respigam até de arte de catedrático.
Era dado às rotações do vinil: escutava Regianni, Fausto, Brel, Godinho, Adriano, Vinicius, Zeca; no pico da intelectualidade: o Modern Jazz Quartet e Billie Holiday, ou Lady Day, como gostava de tratá-la. Deu uma ou outra concessão ao Nelson Ned em noites de poço da morte... No íntimo, no íntimo deste notável causídico, estará Erik Satie com toda a sua irreverência musical!...
Discreto, intimista, foi e é pé de dança estruturado, métrico, medido e comedido, poupando-se a espirais estonteantes e conflito de espaço.
Gravata, nem com molho de tomate: é adorno elitista e dispensável. E aperta a mão em dias de festa.
Talvez depois de reflectida análise, ou bem de acutilante improviso intelectual, sondou-me pela calada da noite: - “tu sabes qual é a pessoa mais convencida que eu conheço?, mesmo de notoriedade zero?”- ao que eu respondi com a mesma acutilância: -“Narciso, suponho”. – “Não, Eu…génio” –, respondeu!
Defensor abespinhado do bico de pena que requer lume brando para verter no manuscrito reflexões amadurecidas, esgrima argumentos a favor do bloguismo plumitivo, continuando teluricamente arreigado à função da “caneta permanente”, barricando-se em defesa deste meio de comunicação e da missiva, como anátemas contra o grande Satã ao serviço da colonização global: o computador. Aprecia, sim, um bom naco poético e sandes de boa prosa.
Nunca foi dado a exibições de gás na tábua, nem a colaças rebaixadas, que trocava por “dois cavalos”- agora “alfarrodele”-, que iam a todo lado: Coimbra, Porto e Lisboa, sem querer menosprezar os mais recônditos lugarejos ou portos de abrigo onde a hospitalidade permitisse mostrar a bandeira de cortesia e, porque não, a barriga de misérias...
Advoga mesmo: deixa para amanhã o que não puderes fazer hoje.
Até porque os anos vêm vindo para cá e nós vamos indo para lá!... Aqui renegando ou esconjurando os genes da avó paterna que, aos 94 anos, dizia: “que Deus nos mate com trabalhos”!...
Respiga nele a influência da Bíblia, ou do convívio com o Padre Fernando, em plena campanha cívica, acantonados em Covas de Barroso, para todo o sempre: “O coração calmo é a vida do organismo carnal”.
“Temos que nos organizar”, tem sido a oração e o apeadeiro a que recorre o eco da consciência, ao não querer perder o comboio do tempo.
Rebelde fez parte do “casting” no filme “porteiro da noite” tendo ganho um Óscar. È um namoradeiro de estrelas, gostando de as apreciar até que o sol as tornasse ocultas e, cansado de as olhar, procurasse a horizontal para continuar a sonhá-las.
Nos viçosos anos do sonho e da loucura, de tenra idade, portanto, quando o espírito da liberdade o orientava em roda livre, foi compulsivamente eleito atirador especial, depois de dedicada aplicação em artes marciais que o promoveram a especialista em minas e armadilhas e condutor de homens, entre outras responsabilidades. Conhecia só a operação de dividir, bem ao contrário de major Vladimir que só somava ou multiplicava.
Herói (não gosta do elogio) da guerra colonial em Angola, na mítica Quim Pedro e Nanbuangongo, paragens onde o calendário se expunha deliberadamente ao contrário para marcar, só, os dias que faltavam para o regresso. Temerário no porte e atitude (em teatro de guerra, só!...), nunca precisou de golpes de Ninja para persuadir ou derrotar o adversário. Utilizou sempre a dissuasão verbal para toda a contenda.
Rebelde não terá agradado aos magnatas de Hollywood, mas terá inspirado Francis Ford Coppola no magistral Apocalipse Now, a cores. Mas, ao contrário de Coppola que foi pressionado pelo Pentágono a corrigir o guião para não mostrar a derrota no Vietnam, a troco de facilidades na utilização de material bélico de borla, nas filmagens, Rebelde, com guião de Manuel Feliz, exigiu a derrota a preto e branco.