terça-feira, 30 de junho de 2009

O Anão de Xabregas

Nick Nack, com 119 cm de altura – há liliputianos mais baixos – lutou com resistência contra 007 da série James Bond em "O Homem da Pistola de Ouro" de Guy Hamilton (1974); acabou derrotado e, alegoricamente, "de cana" dentro de uma maleta – no filme, claro. Suicidou-se (na vida... real) em 1993, aparentemente por culpa de um tal Ricardo Montalban, por razões alheias a esta crónica.
O Anão de Xabregas, personagem alfacinha com escassos quatro pés de estatura, também perdeu (neste caso a feijões...) contra Zeca Monteiro da série "Friends Never Died", com quem lutou até ao limite do tolerável, na heroica e abnegada tentativa de aguentar ou anular a pressão psicológica da presença do referido Zeca Monteiro, em circunstâncias que tiveram lugar no Coliseu dos Recreios de Lisboa e que adiante se descrevem. Como complemento de informação será pertinente lembrar, que seria fisicamente impossível ao Anão vencer um veterano e medalhado combatente da Guerra Colonial Portuguesa na Guiné: Zeca Monteiro. A reconciliação, sem abraço (...) e sem perdas nem ganhos, – empatados, se mais percetível – terá sido possível através de diálogo franco e transparente entre Zeca e o Anão: - "Não vou contigo aos figos; não vou contigo à merda! Pátáti-pátátá! Tic-tac, três alqueires!" Choca-aí!


No micro universo do Circo sobrevive uma figura a que poderemos chamar de palhaço-saltimbanco, personagem mais bem definida no plural, já que quase sempre atua em grupo. O agrupamento de palhaços-saltimbancos diferencia-se da família de palhaços principais de que são exemplo: Tété e Rabanete, Tété e Caridade, Pollo y Pollito, etc.). Estes também são conhecidos por Os do perlimpimpim e ocupam o ponto alto da arte circense.

Várias gerações de Palhaços têm vindo a fazer a distinção entre: O Pobre, com o rosto maquilhado a cores vivas, calçando sapatolas grandes, calças largueironas, hirtos pelos nas pernas, maiores que pregos caibrais que lhe furam as meias, andar à pato, desajeitado, luvas com dedos muito compridos, e ainda, a omnipresente “batata” vermelha a esconder o nariz; O Rico que maquilha o rosto de branco – claro, calça sapato branco-polido, bem-posto e bem-falante. Às vezes, esta família dá acolhimento a mais cómicos Pobres.

A miudagem delira com as brincadeiras e as trapalhices destes artistas de cara pintada, com os seus números e com as estampilhas que dão e levam uns dos outros, tão bem simuladas pelo estalido de palmas; em contraste com o silêncio de cortar da respiração e o arrepio, quando o olhar, a medo, se fixa lá no alto da tenda do circo, sempre à espera que acabe em bem, a temerária atuação dos homens e mulheres do trapézio, ou do homem-bala.

Os saltimbancos, nem são pobres, nem ricos, nem remediados… Talvez pobres diabos! Uns desastrados! Uns desajeitados! Uns trampolineiros! Uns trapalhões! Bom! Estou a ser bastante redutor e até injusto. Há neles um pouco de tudo: empenho, dádiva, virtude e sacrifício: aprendizes de prestidigitadores, acrobatas, engolidores de fogo, lança-chamas, saltadores, bailarinos, cantores, etc. Nos circos modernos: Royal, Cardinali, Chen, Monumental, Mundial de Moscovo, de Mónaco, Du Soleil, etc., estes artistas saltadores preenchem habitualmente os tempos mortos entre as atuações, nomeadamente: quando é necessário montar ou desmontar estruturas que servem de suporte ou proteção a um determinado desempenho. Talvez por isso sejam desajeitados, ao terem de misturar-se e confundir-se com os "técnicos" que armam e desarmam essas estruturas.

O Anão de Xabregas, fazia parte deste escol de fazedores de riso e alegrias e, no seu caso, com responsabilidades acrescidas: era o elemento estruturante do grupo, o mister e, simultaneamente, o garante de um público entretido e refém da sua criatividade pantomineira. Para isso, tinha que medir rigorosa e previamente as consequências da sua performance, já que, só por si, a sua estatura tanto podia resultar em benefício, como em rotundo desastre, quer físico, quer psicológico, face ao vexame que o público lhe poderia tributar se as coisas dessem para o torto. Os saltimbancos recorrem à improvisação e fazem depender da leitura que a cada momento fazem do ambiente, os desenvolvimentos da sua actuação. Mas nunca dispensam a vassoura!
Conhecemos a grata figura do Anão no Coliseu dos Recreios de Lisboa, e posteriormente, acompanhámo-lo uma ou outra vez a caminho de Xabregas, no elétrico da "CARREIRA Nº 3 - POÇO DO BISPO - ARCO DO CEGO", de regresso a casa.
Aqui recordamos o único desaire de que temos memória em toda a trajectória profissional deste dedicado e talentoso comediante:

Com rufo de tambores, olhos assombrados e cabelos arrepiados, tinha acabado em apoteose a temerária exibição, “Salto Mortal”, da família Águias Humanas”, trapezistas voadores da Companhia de Circo. É neste oxigénio de suspense que uma súbita aura, seguida de temporário episódio de amnésia, bate à porta da memória do Anão, assacada à presença do espetador Zeca Monteiro.
Vale a pena, entretanto, aludir aos três aprazíveis lazeres na vida de Zeca Monteiro: O circo - está com a mão na massa –, a boa mesa – frango de churrasco…- e futebol - ligações ferrenhas ao Benfica. Foi um Doutor na indústria do desporto rei, não permitindo opiniões de curiosos no debate: “O assunto é sério e só entra quem sabe o que está a dizer!”, advertia, então. A única frase profana que se lhe conheceu, perscrutados os sinais para prognóstico do jogo com início iminente, foi comentar em sussurro aos “sócios”de tertúlia: –“Todos os jogadores, de ambos os lados, se estão a benzer… Vão empatar!!!”
Estávamos na época 1986-87. João Arnaldo Vilarelho, sportinguista, entrou insidiosamente no território de Zeca Monteiro e disse: - “Zeca, Chaves zero, Benfica zero! – “Ah!” – exclamou Monteiro, a desculpar a ironia do ataque, não fora ele de Vila Frade. Podia e devia a provocação de João Arnaldo ter ficado pela amostra, isto é, pelo cartão amarelo; até porque Zeca Monteiro seguia de perto o raciocínio frio e consequente de Agata Cristie, de longa data, o que lhe aguçava o discurso. Vilarelho não se conteve, ou não ponderou a complacência tática de Monteiro, e rematou mais forte: – “Sporting sete, Benfica um! E já lá vai o tempo dos cinco violinos…”. Zás! Cartão vermelho! Toma que é em serviço! Monteiro, sentiu uma onda gélida a subir-lhe a espinha e alegrias tristes a descerem no abdómen. Defendeu o livre direto e estalou o verniz e o vernáculo. Arriou a giga com o que de pior havia aprendido na Rua dos Gatos! Qual Quim Barreiros!!! que vendaval!: - “Olha, Arnaldo, bufa na cana e vê se os balões estão rotos! – foi a mordaz ordem que proferiu, seguida das referências à mais antiga profissão do mundo, passando por recomendações ao pai da humanidade e arremessos excrementícios, não esquecendo o respetivo esfíncter.

Feita esta breve incursão pelo mundo de Zeca Monteiro, em que pincelámos alguns traços ligeiros do seu perfil, regressemos ao Circo, no caso vertente, primeira fila da bancada do Coliseu dos Recreios, à Rua de Santo Antão, em Lisboa, onde um grupo de amigos, de que Zeca fazia parte, tomou assento, junto à coxia central, passagem obrigatória para o grupo encabeçado pelo Anão de Xabregas, nas suas entradas e saídas de cena.
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Tudo foi correndo às mil maravilhas: aos executantes, às feras e a outros do elenco que se salvaram na Arca de Noé. Nenhuma nuvem agoirenta a pairar por perto, tudo sobre carris. A alegria sobrava, nessa noite.
O ambiente e a técnica circense terão criado uma atmosfera delirante no imaginário de Zeca Monteiro, que, confidenciou posteriormente, despejaram no seu consciente o caleidoscópio da infância e adolescência, prenhe de recordações destes espetáculos.
Os lugares comuns vinham-lhe à memória, como cerejas: Meninos e meninas, senhores e senhoras, admirável público: O maior espetáculo do mundo vai começar...
“Ah! Os rufos (...); os circos... o momento de grande tensão dos “números” arriscados, de vertigem; o clímax, e o chamar de atenção, da incumbência do mestre-de-cerimónias, para a nata de cada exercício! Aliás, já a chegada da caravana era um sobressalto na vida íntima de cada um, e um safanão na pasmaceira do quotidiano coletivo. Meninos e meninas, Senhores e Senhoras, o circo chegou!
- Que tema este! Um arrepio! Até que um batimento seco na caixa punha fim ao rufo e anunciava o fim da acrobacia! Põem-se-me de pé os cabelos de tanta adrenalina!
Aliviado o “suspense”, o agrupamento musical privativo da companhia circense atacava um tema a preceito ao mesmo tempo que o “team” de artistas da “performance” acabada de executar se reconfortava com a ovação carinhosa da assistência, que decalcava o ritmo da peça musical com palmas em aplauso. ...É o circo... que apresenta...
Mas quando se ouvia o serrote afinado de timbre “violinico” do Zéquinha Quintanilha era o delírio! A magia, e um turbilhão de alegria para a garotada. O final reunia toda a família dos artistas, os quais, empunhando as bandeiras representativas das respectivas nacionalidades, davam início a um desfile circular em redor da pista, marcado pelo ritmo da música interpretada por virtuosos executantes, em atitude de reconhecido agradecimento, até desaparecerem para lá das cortinas que tinham guardado, em segredo, a surpresa dos “números”. Que diria Jaques Prevert, entre outros? Heminghway? Claro!
Um tango! “Palhaço”! Composição da autoria de Zé Firmino Morais Soares, emprestava a melodia à banda sonora do filme onírico de Zeca Monteiro.
Novamente o vozeirão do mestre-de-cerimónias:
Senhoras e senhores! Meninos e meninas! Na pista deste Circo, para alegria de todos, em especial dos mais pequenos, chegou o momento do riso ao nosso espetáculo!
Quintanilha Mendonça, “Palhaço pobre” que ria e chorava à mercê dos tempos e das histórias que contava, colou-se à mente de Zeca Monteiro que nem chicla.
O vibrato do serrote (marca avião) deste lendário fazedor de riso, quase arrancava uma lágrima furtiva à nostalgia de Zeca Monteiro, não fosse a presença, no tempo certo, do ar e da sonoridade militaristas dum trombone da banda do circo, a dar-lhe stamina.
Quanto ao prazer da mesa, Zeca Monteiro dizia sempre "presente" à convocatória que Lula da Silva fazia "à brigada de sócios" para eventos pantagruélicos, que, invariavelmente, terminavam com outros não menos lúdicos, e, com franqueza, de mijar a rir!
É assim que, da responsabilidade dos frangos confeccionados e ingeridos na Casa do mesmo nome, restaurante na zona dos Restauradores onde Zeca Monteiro estivera a confraternizar com a referida "brigada" de amigos, acometido por irreprimível flatulência, mais do que por premeditado comportamento de atormentada víscera oca, ou por erro de alquimia, Zeca Monteiro sentiu e consentiu, paulatinamente, a fuga de radicais voláteis pelo epónimo colon, até ao fim de linha.
Quintanilha tocava vários instrumentos convencionais, de sopro e cordas além do acordeão, e não convencionais, com destaque para o serrote, em partituras clássicas, e bomba de encher pneus, em partituras ligeiras.
A alegria estonteante com que recordou as variações que Quintanilha extraía dos instrumentos de sopro foi tal, que o imitou, desferindo nas barbas do Anão, que coincidentemente observava da coxia a atividade na pista, um potente acorde dissonante. E logo quando o Anão preparava o plano para animar o intervalo que separava o desmontar do “Salto Mortal” dos trapezistas voadores, e o montar das grades da jaula e restante parafernália de segurança para a exibição do número das feras – corpulentos leões da Abissínia – depois de já terem atuado os crocodilos do Nilo, serpentes do Amazonas, tigres da Malásia, ursos polares, e até um hipopótamo e um camelo, deixando aquele caudilho de saltimbancos à beira de um ataque de nervos e de outras manifestações fisiológicas, desorientado para o restante espetáculo.
Zeca Monteiro a cagar-se de riso, claro! Até porque o Anão fez várias tentativas para sair pelo local de entrada, não o tendo conseguido ao esbarrar com a presença lacrimejante de riso de Zeca Monteiro; denunciadora de atitudes de baixo quilate social. O Anão de Xabregas e o seu grupo de saltimbancos maltrapilhos, acabaram por sair, banhados em lágrimas por outra porta, já que assim evitariam um alto concorrente de nonsence.
Daí até ao fim do espetáculo mais não fez que cirandar por entre as atuações, entrando e saindo a medo e à deriva, tentando exorcizar, de soslaio, o pesadelo hilariante de Zeca Monteiro.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Despedida

DESPEDIDA
Com o peso de setenta e quatro primaveras em ombros, deslavadas, insossas e rascas, a senhora Arminda Honrada continuava analfabeta, ou cega para a leitura da escrita, como contava, com mágoa.
A impressão digital, da responsabilidade do seu dedo indicador da mão esquerda, continuava a única forma de identificação, além do retrato do bilhete de identidade, claro! O dedo indicador da mão direita, mais utilizado nesta função de verificação de pessoa, parecia mais um pequeno pau de vide retorcido e cheio de nós, um trambolho tal a anquilose pela usura das tarefas domésticas, muitas sob intempéries.
Dizia-me, certa tarde, Arminda:
- Olhe; trabalhei toda a vida, desde muito nova. Comecei por servir em casas boas e honestas, de professores. Levantava-me cedo e, quantas vezes, a noite já espreitava a madrugada com a lua a voar bem alto, e ainda passava a ferro, bem de pé; outras vezes, não foram poucas, me dizia a senhora professora quando calhava ir a essa hora ao quarto de banho: -Vai-te deitar, Arminda! já é tarde! - Tinha a obrigação e o zelo à flor da pele; só me encostava depois de tudo pronto e arrumado; sempre fui muito fresnética.
Recordo o respeito e a educação que havia naquele tempo. Hoje; são as raparigas que se atiram a eles (rapazes). Não têm vergonha. Mostram as tetas por tudo e por nada. Bem; tamém as tetas!
Já espigadota, surpreendia-me, a miúdo, a obediência ao mandamento: Crescei e multiplicai-vos!-; a par com alguma concorrência de gineceu, que começava a martelar-me a moleirinha. Sismei: É chegada a altura de me arrumar! Pensar na boda! - que nunca seria de arromba, nem o dote grande coisa.
Carolino fez-me o rente; rascava a asa com olhos meigos. Comá sim todos pimpam (…) Casei-me e tive quatro filhos. Alguns são já reformados. Dantes toda a gente tinha uma porrada de filhos; todos descalços e com saúde; hoje, ainda estão na barriga da mãe e já estão podres ou tolheitos! Só se comem venenos, agora! Tudo era mais puro antigamente! O meu homem bobia muito. Então, aos domingos, era demais: bebia, bebia, bebia… De tarde ia com os bois pró monte, via dois caminhos, e só fazia tontices. Era mau como as cobras e fez-me muitas desfeitas. Ameaçava-me muito e eu não podia dizer nada; boca calada senão caía bernarda. Um temeroso chefe de família! Estas ameaças esmoreceram um tantinho quando os filhos cresceram e lhe começaram a arregalar os olhos até às orelhas. Deus, não dorme (...) Bem, em quem mais poderia mandar Carolino, senão em nós e no gado!...
Carolino já lá está, vai para 18 anos. Bateu a bota rápido. Deus chamou-o e ficou-se como um passarinho. Faz-me alguma falta.
Sabe? - apontando Arminda para as partes vergonhosas - arrumou-se-lhe por baixo! Todo inchado! Morreu, tinha em baixo macho e fêmea inchados (…) assim me disseram no hospital. Carolino esteve duas semanas hospitalizado e mandaram-no de volta para casa, despedido. Regressado a casa, já a pensar no sacramento da extrema-unção, Carolino chamou-me e disse-me: - Arminda, perdoo-te tudo se me perdoares. Se achares bem, chama o Lotário que eu deixo-te tudo que queiras.
Perdoei-lhe mesmo sem a presença do Notário!
“Oh… Que eu viva mais uns aninhos…” - disse, por fim, Arminda Honrada.

Nem sempre a despedida tem este alívio nostálgico, resumido ao engrunhar de lenço branco. Bem pelo contrário: A despedida é, quiçá, o momento que desencadeia o sentimento mais doloroso da vida. A despedida condiciona um estado de alma indescritível e intransmissível.
Sempre presente na diáspora, no infortúnio e na morte.
A omnipresente lágrima, a fio, ou furtiva ao canto do olho.
Alguma da música mais elaborada foi composta para contextualizar e dar a maior solenidade a este ambiente taciturno, emprestando-lhe uma atmosfera musical de missa funebre: O Requiem (Missa de Requiem). Verdi, entre outros compositores, fê-lo prodigiosa e magistralmente.

Ómega Três, um amigo que Deus tenha, do signo dos peixes, visceralmente traquina, comovia-se facilmente até às lágrimas, quando o encontro lhe trazia à presença gente do peito. Assim aconteceu um dia, aquando da visita de um amigo comum, em Lérida, Espanha; paragem onde havia feito as pazes com o trabalho, como agente de restauração, e peito (...) ao corpo e à alma de uma jovem que amara até ao último suspiro.
Por instantes, de memória já perdida no tempo e no espaço, Ómega Três entendeu avivar nesse encontro, entre outros temas aleatoriamente escolhidos, o seguinte:
- Não se me varre da memória a lembrança de Óskar, o Juiz Desembargador amigo de meu primo Rebelde, que acabou carcomido pela doença, transformado num bicho desfigurado da Criação. O cancro deixava-lhe uma barriga magra, escondida em pele de cobra, que pouco pesava aos ossos lambidos de musculo e, por tal, poucos vermes medrariam, tão consumida a carne estava.
O Juiz pertencia a uma família de cineastas, com muitos e célebres Óskares no seu clã. O Desembargador, que nunca acreditara em Deus - assim o dizia - não foi, por isso, a Fátima ou ao fim do mundo para recuperar o corpo que se perdia rapidamente a favor de nada, num apelo patético à vida. Talvez a sua heresia, (sabe-se lá!...) o tenha tão duramente castigado na carne - terão dito aqueles que acreditam ou defendem que este mundo e esta vida são plataformas de sofrimento e penitência, e não de prazer (…). E que a inteligência humana é a responsável por tudo isto (…) - dirão outros sábios e outros videntes (…) - havendo encomendas e fatos para todos os gostos!
Se a condição humana vive do sonho e da experimentação, e se feitos nós à imagem e semelhança de Deus, podemos, na esteira de Einstein, ser um sonho que Deus sonha, e o nosso futuro muito relativo.
Mas, mesmo consciente da guilhotina que descia predadora e inclemente em marcha lenta sobre o seu magro pescoço, Óskar mantinha-se de pé e botas postas.
As vilezas dos homens, as traições e dureza dos homens, as injustiças dos homens, a agonia da carne e o silêncio omnipresente de Deus: massacres, saques, guerras, batalhas, vitórias, derrotas, violência, vilanagem, prepotência, crueldade, mentira, bastardia, sobranceria, perversidade, ruínas, opulência, escravatura, incêndios, e todas as marcas da bestialidade, conhecidos de Oskar, não seriam obstáculo à reconciliação com a Divindade. Não seria o pendor aterrador da antonomásia de "Todo Poderoso" que faria esse milagre. Não. Nem troca por troca. Bastava que Ele deixasse escapar um murmúrio de impotência perante a dor e o sofrimento, e sussurrasse que, na” criação humana”, não previra defeitos na génese, organização e qualidade do código genético dos humanos e, como intenção bastante, o advento de reparar erros existentes em matéria tão complexa, como é a condição humana. Sem falsificações nem contrafações.
Aí, de ateu a gnóstico era um pulinho. E a reconciliação ao virar da esquina.
A realidade nua e crua com que Óskar se confrontava, levava-o a desejar morrer. Já! Do coração! Que é morte santa (…)
Como só os santos têm direito a este requinte no instante da morte, a esposa vivia apavorada com a sentença a que os deuses tinham condenado o marido, e tudo faria para regenerar a saúde de Oskar e resgatá-lo ao impossível.
Suplicou-lhe: “Oskar!, já que os médicos te desenganaram quanto ao tempo de vida que terás, deixa-me ao menos ouvir a opinião do curandeiro de Tresmundes: Rato Sabido.
“Se isso te tranquiliza… venha ele!”, -disse-lhe Oskar-.
A luminária de Tresmundes (residente em três mundos, como facilmente se deduz do topónimo) aparecera, e o Jurista explicou a este bruxo o que o ralava, e esperou o parecer do constado "milagreiro", que não tardou o diagnóstico e disse: “Você o que tem é uma hidropisia Constantinopla cuja qual lhe provoca uma solidão que o leva às campânulas da morte!” “Estás satisfeita?” - perguntou o Juiz-, “Estou” - respondeu a esposa resignada em compaixão e lugubridade. “Também eu!... Até que a morte nos separe, Maria" - Disse o Juiz.
O Meritíssimo corria agora ininterruptamente a final. A esposa guardava os últimos pedacinhos de vida do amado, revelando, a posteriori, esse retrato de eterna recordação: “Para o fim" - dizia a esposa - "já mal abria os olhos. Estava, então, a dar-lhe de almoçar e disse-lhe: “Óskar! abre os olhos, parece que já não gostas de mim!”. Ele entreabriu-me os olhos; dei-lhe um beijinho e segredei-lhe: vês! Estás tão bonito! Fechou os olhos, deixou de respirar, ficou muito quieto e nunca mais respondeu.

A morte é um dos temperos mais apetitosos do drama. Desde sempre. Sê-lo-á sempre, presumo.

Em Covas de Barroso, as criaturas nascem e morrem como em qualquer outra parte do mundo. Aí, onde havia rezas para quase tudo e crenças em quase tudo, qualquer homenagem feita a essas tradições cairá no goto, ainda que respigue alguma alteração ou mesmo adulteração pela usura dos tempos. Peço desculpa se me julgarem juiz em causa própria, e perdoar-me-ão, suplico, se aqui descobrirem algum pecado! Até porque este relato já pertence à tradição oral.
Naquele tempo, pelo menos, o dia-a-dia das gentes de Covas era diferente doutros lugares e doutras paragens, na maneira de estar e de ser, e de sentir. Ainda o passado se esgueira à esquina e com ele se esfumam os códigos de conduta sociais e comunitários que vestiam uma roupagem muito própria e muito sentida. Quem procurar uma costela do Portugal primitivo, justiceiro que nem revolucionário, dicotómico de agreste e selvagem a bondosamente ingénuo, vá nostalgicamente a Terras de Barroso. Lá encontrará o último reduto desse micro universo com atmosfera própria. O vento que sopra na cordilheira mais setentrional Gerês, e o fumo que ainda se esgueira e escurece algumas chaminés locais, teimam em mostrar o passado ao presente.
Mas do que de genuíno e diferente falo é de funeral. De exéquias. De mortalha. De enterro, como aí se diz. Da partida para o além. Para o desconhecido, ou para o Céu! Sem limusinas, sem cortejo automóvel, sem funerária de marca, sem grinaldas: quando muito carreta. Uma ou outra mulher carpideira, de luto pesado; fitas negras à volta das mangas dos casacos; uma ou outra flor. E a solidariedade de quatro braços musculados pelo trabalho no duro, e outras tantas mãos, empenhados no ritual de levarem a campo-santo quem, felizmente, ainda tem onde cair morto.
Os dias de hoje, com todos os motores de busca de conhecimento ou informação que a Internet nos proporciona, não identificam forma idêntica ou parecida com aquela que vos conto, em matéria fúnebre.
Oxalá, o ancestral costume de fazer parar o féretro junto à porta de casa do defunto, quando a caminho da eufemisticamente chamada última morada, após missa de corpo presente, que vigorou nessas paragens se tenha conservado. E resista a ir pró maneta!...
Esta paragem destinava-se a uma última palavra de despedida ou expressão de sentimento do ente mais próximo, junto à habitação que lhes deu abrigo e conforto ao longo da vida.
O coração da senhora Brígida Bemposta silenciou-se sem apelo nem agravo e o tum-tá que nunca dera tréguas ao cansaço, deixou definitivamente de se ouvir. Recebera, sem a mínima reserva, a extrema-unção, ungida com óleo em nome do Senhor, e demais bênçãos da da Santa Madre Igreja dedicadas à cerimónia do momento. Todo o apoio de familiares e amigos. O marido, Senhor da Casa, arrastava-se já, anquilosado por graves artroses das ancas, pelo que não pode ir ao ofício de corpo presente, ficando em casa, sentado à janela ao jeito de namoradeira, à espera do ataúde. Quando o caixão e a ocupante defunta se aproximaram daquela que fora a sua casa durante toda a sua vida, o reverendo mandou parar o cortejo fúnebre. Como sempre, perguntou se alguém da família, à laia de despedida, quereria dizer algo, alguma elegia, à defunta. O esposo levantou-se a custo, com o apoio das muletas e disse a choramingar: “Olha, Maria, sempre foste boa rapariga, boa patroa e boa mãe. Não sei para onde vais nem onde ficarás" - dizia erguendo a cabeça e o olhar para o azul frio de um céu distante e mudo na resposta às angústias e melancolia de Catarino; e continuou: - "mas vás para onde fores uma coisa te digo:"- tomando o peso aos genitais (grães em léxico autóctone) com a mão esquerda - "lá não encontrarás um par de quilhões, como este que aqui deixas". “Siga, siga” - ordenou o padre!...