quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Jerry

A terra do Tio Sam onde medra - ou, pelo menos, medrou - o "sonho americano", tem acicatado incursões de pobres, crentes e outra gente dos cinco continentes, ao culto da grandeza, glória e poder. Estes condimentos têm adubado com grande estardalhaço o imaginário dos caucasianos, nomeadamente dos europeus - o meu incluído -, desde a descoberta da América pelo seu descobridor oficial: Cristóvão Colombo. A epopeia dos "Pilgrims Fathers" que zarparam de Plymouth, Inglaterra, abordo do Mayflower (quem não conhece esta nau!) e do Speedwell rumo à Virgínia, foi imitada por grandes levas de emigrantes desta “península ocidental da Eurásia”, particularmente a partir de 1607, para colonização da América do Norte. New York, The Big Apple, "The City that never sleeps" dá o céu, a terra, o mar e três vinténs, aos caprichos de visitantes e turistas que a procurem, ensimesmados na descoberta ou busca do Novo Mundo ou do El Dorado. As aventuras de Bony and Clyde, Al Capone, Lucky Luciano, ust! A Cosa Nostra... Os guetos de polacos, de irlandeses, de chineses, de judeus. Negros: um caso à parte. O Vietnam. Lay-offs. Sindicatos e Feministas. Ku Klux Klan. A NASA e a ida à lua. Hippies. Cowboys, Índios e Gringos. Marlboro. FBI, etc, etc, etc, tudo gongos à curiosidade irreprimível do Velho Mundo.
O calendário que assinala o rascunho deste conto vagabundo tem a marca do tempo em que pairava ainda, conturbado e a preto e branco, o espectro ameaçador da "Guerra-Fria" e da “Cortina de Ferro”. Transcorria uma década do terramoto provocado por Nikita Khrushchev, que tendo descalçado o sapato, bateu com ele na mesa, forte e feio, em plena sessão da Assembleia-Geral da ONU, que decorreu em Nova Iorque a 12 de Outubro de 1960.
No início da década de setenta, com a Lei Seca há muito abolida, em pleno bairro que viu nascer Woody Allen, “nas barbas” da polícia da alfândega que patrulhava o cais marítimo comercial de Brooklyn, brincava-se à candonga com garrafões de aguardente, bagaço do melhor. Voavam em arco, arremedando um exímio salto à vara, por cima da alta cerca de arame que circundava o cais, sendo recebidos no exterior por cuidadosos e musculados braços da “building construction", que os agarravam com todo o carinho, como de “Little Babies” se tratasse… Mas prontos a dar o fora, a fazer lume na estrada, à mínima suspeita de descoberta ou perseguição, em "Harley Davidson", por polícias de giro. O que é óbvio é óbvio, contudo deixo claro que essa aguardente se destinava a aquecer o corpo e a alma de compatriotas, emigrantes, que aí procuravam ganha pão e pé de meia para regressar e viver os anos sobrantes no cantinho “abençoado (…!)” de onde zarparam. Aí, em Brooklyn, se prometeu aos mesmos emigrantes contrabandear pistolas dentro de carcaças de animais transportadas em câmara frigorífica, para que os emigrantes brancos não tivessem medo dos negros que acabavam de se emancipar, e utilizavam, já, os mesmos transportes públicos que haviam sido privilégio de brancos. Aí, em Brooklyn, festejaram-se o Santo António e o São João com bacalhau, pimentos e batatas a murro, no tombadilho do cargueiro Horta (Carregadores Açorianos), engalanado e iluminado por gambiarras a cores e bandeirinhas. Fica a lembrança de uma grande mesa corrida decorada e servida por meia dúzia de tripulantes a outros tantos emigrantes: veio um do massachussas (Massachusetts), veio outro de canérica (Connecticut); de West Side chegaram os compadres Joaquim Pereira (Jack) e Manuel Barros (Manel Prosa). Jerry, convidado daqueles, veio do Bronx. Honestamente (ou por ignorância...) não estou a ver Manuel Barros com um ego tão inchado e um porte tão altivo, muito menos palanfrório e prosápia, que merecesse o epíteto de Prosa; o povo tem destas coisas... A um tempo em que Prosa frequentava com assiduidade a casa de pasto “Km 10” em Vilela do Tâmega, religiosamente ao domingo à hora de merenda para o pratinho de dobrada e vinho morangueiro, houve quem tivesse notado profundas alterações na maneira como passou a encarar a vida, bem diferente daquela que outrora e com Aurora havia dado a conhecer aos amigos. O coração de Prosa era uma chaga viva, um passarinho que definhava em gaiola de suplícios: não resistia à partida e ao afastamento da amada, nem aos ferimentos infligidos ao seu coração pela dor da separação, da saudade e do vazio da ausência. A saga de Romeu e Julieta repetia-se aí com todo o drama. As paixões arrancariam Manel Prosa à pacatez de Samaiões, para seguir, que nem Ícaro, a loxodrómica dos aeroplanos da TAP, a norte do Mar dos Sargaços, e desembarcar no aeroporto quenédi (Kennedy) onde Aurora Lisboa o esperaria de braços abertos e com o coração mais rápido que o de um Hamster. Prosa trocaria, definitivamente, o selim do garboso cavalo de seu tio, padre Daniel, por um banco de Carocha Volkswagen (isto é: feno por gasolina) com que descia a Broadway de Manhattan e subia a Fifth Avenue do mesmo bairro, deslumbrado com tudo em que a vista pousava. Aí, Grande Maça, onde o pudor e as virtudes não chegavam para proibir ou silenciar filmes hardcore ou striptease com cobras à mistura. “Big Apple”! I love this city! Saudades das idas a Greenwich Village: Blues, Jazz & Country: “My Father's Moustache”. Recordações do Radio City. É neste ambiente caro a Herman Melville, penitenciária de Jack London e berço de Henry Miller que tive conhecimento do protagonista desta estória: um Senhor chamado Jerry, apresentado por Manel Prosa e o seu compadre Jack. Isto a um continente de distância do famoso rato da parelha Tom & Jerry. Tão pouco parecenças com o humorista nova-iorquino Jerome Allen "Jerry" Seinfeld. O que relato não é fábula. É pois um conto não ficcionista, quando muito burlesco. Ocorrido numa altura em que ainda as malogradas torres gémeas não tinham roubado ao céu todo o volume que lhes viria a caber, depois de acabada a obra.
Jerry Tadeus Serafin Lutoslawski, nascera nos Estados Unidos da América, mas corria-lhe sangue polaco, fresco. Balançava, ainda, no ramo ascendente da curva da vida, a atingir o patamar. Trabalhava numa fábrica onde tinha e sentia a protecção do filho do patrão, seu amigo desde a infância e nascidos no mesmo bairro nova-iorquino. Amizade que lhe garantia a manutenção do emprego, já que era flagrante, recorrente e constada a sua baixa produtividade laboral, no seio de um tecido empresarial exigente. “I’ll be back”, era a frase mais ouvida pelos camaradas de trabalho, estes sim “workaholics”. Nem sequer se dava ao luxo de deixar o boné no local de trabalho, para que um ou outro companheiro pudesse sugerir piedosamente, que Jerry andaria por perto. Bom, bebia demais. Com todas as consequências que deixo à reflexão de moralistas e polícia de costumes. Em casa as coisas também não corriam lá muito bem. Frequentemente a companheira dava à sola, por manifesta incompatibilidade de relação; e alguma porrada em dias de overdose! Jerry iniciava sempre o pequeno-almoço com duas a três cervejas; ao longo do dia carradas de canecas de Guinness, pelo menos...
Jerry estava, então, num período de reconciliação com a ex-mulher e companheira de sempre: cama, mesa e pucarinho, e regressavam de visita a um casal amigo que morava no”Ironbund” de Newark. Weekend, aperaltado com gravata e brilhantina, ainda que ligeiramente amarrotado no seu todo, sentado ao volante de um Buick de 1928 usado mas com saúde satisfatória, graças aos cuidados da clínica de mecânico amigo e competente. Um pequeno Rockeffeler, pensava-se, nesse fim-de-semana. A “ideia” começava a tentar sem apelo nem agravo a mona de Jerry. Tentou parar uma ou duas vezes pelo caminho para reabastecer, preventivamente, de petrol, tendo tido a desaprovação da esposa que estava atenta ao ponteiro do combustível. Como o período era de reconciliação e pesava-lhe o passado cheio de “busez” (bebedeiras) e outras cenas pouco edificantes, foi aguentando a fúria da sede e da ressaca, mantendo-se cordato. Ia chupando salt water taffies (rebuçados de água salgada) e dava-se a cantarolar “King of the Road” ("Rei da Estrada", canção de Roger Miller, de 1964), na tentativa de enganar o vício que crescia sem dó nem piedade. Estava a atingir o clímax da síndroma da abstinência, pelo que pôs em marcha um plano redentor. O anoitecer apareceu cedo, com céu fechado e escuro a anunciar queda de neve eminente. Tão pouco o bafo das águas do rio Hudson temperava a atmosfera e o ambiente da cidade que nunca dorme, de frias que estavam as águas. Era já escuro e o frio da noite de Inverno começava a fazer-se sentir pelo que ligou o ar condicionado, dando-lhe a máxima temperatura, sem dar nas vistas. Estava montada uma atmosfera de estufa, bem ao jeito dos seus propósitos. Com a temperatura no interior da limusina, que nem borralho, disse à ex-mulher: - “Estou muito preocupado com o aquecimento do motor, não sei o que se está a passar” -, - “Realmente isto está de assar; é melhor pararmos na berma da estrada, e dás-lhe uma espreitadela”- sugeriu ingénua e prudentemente a esposa, que, além do mais, não lia a informação do termóstato da chofage. Ainda a paciente senhora não tinha acabado de falar já Jerry accionava luzes de emergência e pousava a patola no travão disposto a parar. Encostou à direita, logo que pode. Desengatou a patilha de abertura do Capô e saiu. Com o capô levantado, mais o ambiente nocturno, foi de gatas à mala do carro, emborcou sofregamente duas cervejas de um folgo, e regressou de gatas ao motor. Aí chegado e aconchegado por duas bazucas Guiness, disse em voz alta - “Já está bom!” -. Fechou o capô. Entrou no carro, sentou-se, ligou o motor; calibrou a temperatura do ar condicionado e arrancou, sorridente (...) - “Que achas disto, Jerry?” - Perguntou a esposa, - "O radiador estava seco; atestei-o, de momento; já podemos ir” -. E lá foram!
On the road againJust can't wait to get on the road againThe life I love is makin' music with my friendsAnd I can't wait to get on the road againOn the road again
... Willie Nelson