quarta-feira, 30 de junho de 2010

Tempo de Festas

São Caetano
Tempo de Festas, vêm aí: a “do” São Caetano (serôdia), da Senhora das Brotas (temporã), da Senhora da Saúde, dos Aflitos, dos Mártires, da Azinheira, da Aparecida, da Libração, do Senhor do Calvário, dos Aflitos; de muitas outras Santas e de não menos Santos e Padroeiros, cada um em seu altar e em sua área de influência. Renovam-se ao ritmo dos solstícios e constituem efemérides que o tempo não consegue apagar, tão gravadas estão na memória de todos, e dos Emigrantes em particular, que, com saudades e lamecha, cultivam regularmente a lembrança de tempos livres, descomprometidos e solidários. O cordeiro, ou cabrito, assado de véspera no forno comunitário, impunha aguardar nervosamente a hora do almoço, e dar-se-ia à prova de predadores esfomeados e sedentos, que, entrincheirados ombro a ombro, se acotovelavam na procura de assento à mesa de toalha de linho imaculada – antes do ritual pantagruélico; da cor da uva preta para o fim do repasto -.
...Zombam da Fé os insensatos, erguem-se em vão contra o Senhor... A missa tinha acabado e a procissão já levava caminho. Andores, estandartes, anjinhos, soldados romanos, pagadores de promessas, povo anónimo; todos pela mesma vereda, comungando do mesmo sentimento religioso. Nas aldeias não havia mirones. Algum, esporádico, só forasteiro.
...Santos Anjos e Arcanjos vinde em nossa companhia, ajudai-nos a louvar a Divina Eucaristia... As melhores colchas pendiam e ornamentavam os peitoris das janelas e das varandas, donde saia uma chuva de flores, arremessada em leque, com intensidade de aguaceiro à passagem do Pálio, ponto alto da procissão; e toda a rua se vestia de pétalas brancas e coloridas, angelical, num asseio bem à altura da solenidade do evento, do rigor dos lustrosos sapatos, da brancura das camisas e das camisetas, das saias plissadas, das meias, dos fatos, lenços, véus, tranças, brilhantina e permanente. A banda filarmónica acompanhava os festeiros, em marcha cadenciada, com o “fiel” da caixa, a executar, sozinho, uma célula métrica: tum, tum, tum, terrrrrum, entrecortada por breves rufos ou, alternativamente, já com todos os executantes, depois de um golpe seco no bombo, e sob a superior direcção do maestro, uma marcha talhada para a solenidade. O Mestre seguia à frente, como manda a “cartilha,” seguido dos instrumentistas, dispostos em formação por colunas. Os sopros, de madeira e de metal, com predomínio destes, levavam a exígua pauta na ponta do instrumento: clarinete e requinta a exigirem vista de pássaro, proporcional à distância da minimizada partitura, para não comprometerem a visão da posição dos dedos e o mecanismo das válvulas. Outros instrumentos que não permitiam tal solução, obrigavam ao recurso engenhoso de dependurar a partitura nas costas da fardamenta do colega da frente, donde pendia engatada por “segurança”. Já para o bombardino a solução era mais fácil! Não havia Sousafone, mas sim a clássica tuba de pistões. Predominava a afinação em brilhante, suponho! E quem tocava carrilhão não ia na procissão! Todos fardados, engravatados, engraxados, luzidios e entregues sem reservas às coisas do Sagrado, com um olhar esguio a resvalar para o profano. Para as refeições, aboletavam-se os músicos pelas várias casas da aldeia aonde haviam chegado de autocarro alugado ou resgatado a algum sucateiro, e posto novamente a rolar, agora reservado ao serviço privado da colectividade filarmónica: Banda... tal...
Era chegada a hora de repor e acumular energias para a tarde e, sobretudo, para a noite que se adivinhava de tarefa dura. A refeição do almoço era a mais fresca e apurada, pelo que fazia um namoro descarado às glândulas salivares que se rendiam babadas a tanta sedução. Sobrava peguilho (ou “cibo”) para dar e vender; mesmo assim “buraca limpa”, como quem diz: comiam como músicos, versão “bandana” (neologismo) de comiam como abades, segundo a crença de cada um. Afinal, quem não é para “o” comer (e beber!...) não é para “o” tocar! O comer e o tocar, andam sempre par a par: refrão esquecido!

Onde é que eu ia? Ah, o sol tinha já chegado ao pico da montanha russa, e, a despertar da sesta, preparava-se para descer. São horas de chiscar a banda. Toca a formar e, nova arruada para anunciar o bailarico da tarde.
A canalha constituía-se em mundo à parte, dando largas à inquietude própria da idade e do acontecimento. Soltos que nem cabritos, estes endiabrados garotos, sempre com o fogo no rabo, a bulir em tudo, davam-se às corridas, para lá e para cá, ziguezagueando por entre os pares dançantes, com ou sem ventoinha de papel na mão, em rotação proporcional ao efeito de Bernoulli, ora às escondidas, ora provocando a atenção dos adultos, ora fugindo deles, ora contribuindo com eles para as revoadas de pó, seguiam a trajectória das canas para as recolher como troféu, tal como cães perdigueiros fossem.
Mas, o licor das festas estava nos arraiais. A noite emprestava um ambiente misterioso e um peito desinibido, bem diferente do ar afectado e acabrunhado que a luz solar desses dias distantes impunha. Um dos momentos altos, vinha com a largada do fogo-de-artifício: a descarga da meia-noite, provavelmente a melhor. A pirotecnia fazia maravilhas, e as delícias de todas as idades. Só as morteiradas ou alguma cana que caia em crânio verde (vulgarmente nos c...nos) de um azarado qualquer, menos atento ou mais lento no raciocínio, parava a mirada posta no firmamento, extasiada com o lacrimejar das series de foguetório, que iluminavam uma vasta área adjacente ao local do baile, gentilmente cedido para o efeito. Em algumas romarias, viam-se, um pouco em jeito devassado, mas avassalador, pares de corpos semeados nos campos à volta, entrelaçados, encontrando-se, depois dos segredinhos, olhares cúmplices e desejos contidos de aproximação, que o decorrer do dia solar tinha proporcionado. Os ainda não encontrados, ou perdidos, os de menor pendor de engate, ou em quem o bicho-caxeiro do cupido trazia desassossegados e ávidos de experimentações, regalavam-se com aquele entregar arrebatador que só um ou outro morteiro faria discretamente arrefecer, tal a fúria indomável da entrega das almas e dos corpos.
Pelo meio destas alegrias e paixões, destes encontros e desencontros, destes amores, desamores ou amuos, uma ou outra escaramuça, vinda do nada, por vezes se vestia de camisa de onze varas. Aí, entrava o desempenho, com brio, do cabo da GNR: normalmente, como diz Ronaldo “Deus não dorme”, seriam premiados sobretudo aqueles que teriam encostado bastas vezes a barriga ao improvisado balcão da tenda dos comes e bebes.
Por vezes, sem saber ler nem escrever, ou ao mínimo melindre, engaliavam-se os arrufados e caia “bordoada” de criar bicho. Mas se a armadilha do acaso picava o clã Gitano, descambava-se numa autêntica guerra campal. Parecia até, que as bengalas, estariam mais vocacionadas e atreitas à curvatura dos lombos, pela capacidade evidente em dolmar, do que dadas exclusivamente às tarefas seculares de apoio em ambulatório. De repente, as coronhas das “mausers” do Grupo Não Recomendado, ameaçavam em jeito de trepano, às vezes praticado, na lógica do disparar primeiro e perguntar depois!
Alguns, dos menos afoitos à dança, iam descendo botão a botão, como quem diz copo a copo, todo o corpo da cintura para cima, deixando deslizar cada vez mais o ventre, o tórax, até ao cotovelo, até à cabeça enlouquecida por um carrossel que não dava tréguas ao desequilíbrio. Um ou outro dava uns passos com o “caneco” na mão, ou, quando mais ousado e desinibido, tentava equilibrá-lo na cabeça, depois de encanadas várias unidades, sob luz pálida e mortiça do carboneto. Era notório um rodopio, um vaivém constante e apressado destes devotos de Baco para locais recatados, onde olhares persecutórios não chegavam – quando a celeridade não os traia – e aí se sentiam aliviados e herdeiros de um paraíso reconfortante, onde, na intimidade, desafogando o prazer da dor, soltavam um suspiro de alívio: háááá!...
Do outro lado do espectro, podia ver-se uma ou outra fila de romeiros, em fila indiana, mãos nos bolsos - de um lado, o dinheiro e o lenço engomado, do outro, algumas carícias apaziguadoras ao furor – enfrentando com impaciência e inquietação, o pudor e a falta de à-vontade que o contacto com a mais “antiga profissão do mundo” e ao ar livre, condicionam. Só quem não sentiu na carne o que esta postura acarreta, em espera impaciente pela vez da satisfação de dever de raça cumprido, poderá estar indiferente. Tudo isto para gáudio de outros mirones que desfrutavam o movimento cadenciado, no início, em crescendo para o final, até aterrarem de vez e satisfeitos, servidos e aliviados na enxerga humana: os cús alvos ao luar do foguetório, exibiam-se em movimento de yo-yo como que suspensos de mola com oscilação vertical de período variável, em curva sinusoidal! O meu amigo João Guimarães (cito o nome por amizade e reconhecimento) lembrou-me com pertinência – e lá sabe porquê… -, que uma vez por outra caía um moleque da árvore mais próxima, ao se acomodar num galho mais fino para melhor assistir o espectáculo...
Enquanto isto, as bandas rivais desunhavam-se num despique frenético, atacando sem tréguas, sem descanso, cada uma com os seus indefectíveis adeptos, para o bem e para o mal, e para levar o ramo, que é como quem diz, arrebatar ou louros do melhor desempenho. Isto se picados no ego, ou quando a cor da camisola corresse o risco de debotar. Outras vezes faziam muita cera e as obras despachavam-nas rapidamente. Por vezes tudo corria bem, na mais santa e pacata harmonia. Uma ou outra vez aparecia um - ou dois - provocadores, armados de concertina a arremedar as filarmónicas, com algum séquito atrás, ora atirando notas de uma qualquer cantiga então na moda na rádio, ou, muitas vezes como suporte melódico de um cantar de quadras ao desafio, intermináveis. O realejo também marcava pontualmente presença na parafernália instrumental destes eventos.
As músicas de andamento lento afugentavam dos coretos, como o diabo da cruz, os pares mais jurássicos, mais "tratados" pelo pingato e mais saturados da omnipresença da "minha" senhora: excepto os adultos single, mancebos espigadotes e galferros na flor da vida, que viam nesta música o bálsamo e a chispa iniciática da felicidade, tentando uma aproximação e uma postura sensual irreprimíveis, não arredando pé dessa fonte musical. Havia melgas, de vozinha maviosa, que à falta de empatia das moças, dançavam uns com (ou contra!) os outros. Era chegado o fim da Festa. E, no fim, todos encartavam o estojo, de regresso a casa. A pé, de autocarro, a cavalo, de carro de praça que nem sardinhas: mais mortos que vivos. Ainda assim os borguistas, cabisbaixos, tristonhos, com olhinhos de carneiro mal morto, resistiam à ideia de que tudo havia terminado, (como dizer?) miragem, tal a nostalgia de festa acabada. A ressaca e o amargor de boca tornavam-se cada vez mais intensos à medida que as gambiarras de luzes, suportadas por postes de madeira, se apagavam de vez, e, os foliões, finalmente regressavam ao pardieiro, que um ilusório e bucólico sentimento mimava de doce lar. O regresso ao piano caseiro representava o esboroar da ilusão intensa e das fantasias confiadas aos últimos dias, e a desilusão não menos dramática de um horizonte distante de 365 dias, quase todos “pica boi”.
Adentrando-se pelo resto da madrugada, o desassossego das entranhas manifestava-se em momentos de alegrias tristes, com gómitos e escorlas, muito papel higiénico (ou outros recursos de higiene íntima : seixos, papel de embrulho, erva...), e fortes doses de laranjada para acalmar o animal!
Quem não tem bois lavra antes, ou depois!