quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Vade in Santos

Feira dos Santos
A Feira dos Santos, em Chaves, pode considerar-se um ritual de mercado e lazer que sobrevive e recusa perder-se no esquecimento e ceder à usurpação toda poderosa dos barraqueiros latifundiários É, a Feira, cunho indelével de toda a árvore genealógica que enraíza na Cidade Linda a quem “nós queremos tanto”, e Vespasiano terá chamado “Aquae Flaviae”.
Foi, e rogamos que seja, o mercado de referência do Concelho, que aguça o apetite e a curiosidade aos concelhos vizinhos. Ano após ano, tem sido a feira mais importante.
O casamento de Feira com Santos, não se sabe se foi por amor ou de conveniência. Certamente vários factores terão contribuído para tal certame. Não vou meter-me por essas veredas, que deixo para um historiador dedicado a estas investigações. A descrição da Feira dos Santos encontra-se profusamente documentada em miríades de artigos, espalhados pelos quatro cantos do mundo.
Não me livro, contudo, da tentação de testemunhar que nessa altura do ano o grosso dos trabalhos agrícolas está (ou estava) feito, incluindo a apanha da castanha “gota” (que bilhó!...), ficando apenas para Dezembro a da azeitona, uma e outra, de execução mais suave ao arcabouço dos que viviam e vivem ainda da jeira.
Os habitantes das aldeias preparam-se (ou preparavam-se), pois, para o duro Inverno que se aproxima (ou aproximava), longo e penoso. Alguma razão estará subjacente ao dito: nove meses de inverno e três de inferno.
Não menos importante é (ou era) o facto de alguns dos rendimentos dos trabalhos agrícolas estarem já nos bolsos, a enchumaçar as calças ou colete, (no travesseiro, cofre ou mesmo empedrados): nunca na Banca.
Outros proventos esperam-se (esperavam-se) das trocas e vendas de gado e lã, as mais representativas.
Chegava, também, a oportunidade de renovar a roupa de vestir e prover o corpo, de alguns agasalhos: samarra, capote, lenço tabaqueiro, botas e socos; e o lar, de provisões e utensílios domésticos esbotenados, ou em falta, bem como acompanhar alguma modernice, entenda-se esta, também, como a evolução previsível das “coisas”.
E, já agora, para os graúdos, relaxar…um pouco de regabofe e de diversão… após tantos e penosos trabalhos ao longo do ano, mitigados apenas por uma ou outra romaria, aqui e ali, no pico do verão. Para os miúdos, um soltar de amarras, com uma lufada de pândega e diversão… um aliviar de tensões no carrancudo início das aulas.
"Antes o poço da morte que tal sorte"! - Aí está ele, o Poço da Morte!!! - bem como uma ampla panóplia de apelativos divertimentos, avidamente procurados por almas sedentas de folguedo e agitação, fruto do acicate da adrenalina que esta circunstancia põe em circulação.

Mergulhado nesta aguarela humana, queimava sua existência o autor da deliciosa picardia que aqui tem lembrança - Saramita, de alcunha, Mesquita de registo – protagonista ilustre de outras façanhas já, neste espaço, relatadas. Personagem evocado pelos seus dotes imaginativos, mais dado ao conhecimento autodidacta e ao raciocínio rápido, que afoito para o enriquecimento material; considerado até um agente desastroso neste ramal.
Filho de um deus-menor, Mesquita terá pertencido ao clã dos pequenos heróis que recorria reiteradamente à imaginação para aguentar a existência, desafiando recorrentemente o "statu quo". Quase sempre aprendendo por ensaios e erros, quase sempre granjeando saber de “experiência feito” e exaltando, com frequência, a bipolaridade existencial com elevada emoção, pelo que fez fortuna de ódios e paixões: traste ou vilão para uns, herói ou ídolo para outros.

Aconteceu, por altura da Feira dos Santos. Saramita acordou para o negócio, empurrado, talvez, por qualquer pesadelo financeiro que o tenha assolado durante a noite. Um aliciante plano para mitigar, quiçá, a falência em curso, afigurava-se-lhe fiável e eficaz ao seu espírito divertido, ensaísta e inovador. Com a ideia a ecoar repercutidamente no cérebro, procurou Castelo, o amigo e conselheiro indefectível, a quem explicou o plano que tinha em mente bem como os respectivos fundamentos. A colaboração de Castelo era imprescindível pela relação de extrema confiança existente entre ambos, que fazia deles amigos do peito, carne com carne.
Consistia o plano negocial na criação de uma tenda de barraca, orientada em determinado sentido espacial. Uma porta de entrada, outra de saída. O interior vazio e escuro, pelo que também não havia espelhos ou outras "ratoeiras". Nem sequer ruídos, ou risos, a imitar fosse o que fosse; isto é, nem terror de cagar calças, nem riso de as molhar.
Em suma, um pequeno percurso em ziguezague, que aumentava a expectativa e a ilusão temporal e espacial do local.
O visitante entrava assim por uma porta e saía, mais à frente, por outra.
Quase me esquecia do mais importante, pelo menos do ponto de vista financeiro: a existência de uma pequena bilheteira contígua à tenda onde se acomodaria o amigo de Saramita, dedicado à venda de bilhetes que permitiriam ao interessado visitante o prazer da aventura por um túnel desconhecido e supostamente cheio de surpresas. A esta atmosfera juntar-se-ia uma seta de néon, pouco sofisticada, a incentivar a entrada.
Mesquita terá dito então ao amigo: “Castelo, este ano vamo-nos encher dele!... Vais ver! Os Bertoldos das aldeias vão cair como moscas. Faz as contas, a um pataco cada um, Feira dos Santos, hã!”.
Castelo estava habituado às tentadoras materializações das fantasias de Saramita, homem de sete ofícios e outras tantas atitudes empresariais, pelo que prenunciou, “é tiro e queda”! Tinha, Castelo, no entanto, algumas dúvidas. Não estivesse ele na qualidade de colaborador e co-responsável directo daquela supostamente lucrativa diversão, perguntou: “Óh Mesquita, como é que tu, e eu..., nos vamos safar de umas boas lombeiradas logo que os primeiros visitantes, se derem conta de que foram completamente burlados?”.
“Aí é que tu te enganas”, disse Saramita.
“Não estás a ver bem a situação”.
“Como assim?”, perguntou Castelo.
“Simples”, - retorquiu Mesquita,
“Imagina só! … os papalvos entram por uma porta, dão umas voltas lá dentro sem ver nada, saem pela outra porta e estão cá fora, na Feira... Reacção imediata: filhos da p..., que bem me levaram estes c...os! Claro que até sentem frio na espinha, “engaranhados” até ao arrepio. Mais, a reacção não é só de frustração e de revolta, mas pior: é também uma vontade quase irreprimível de ajuste de contas e de limpar a afronta, ou o sebo! Mas não o vão fazer! Porquê? Porque maior enxovalho adviria se dessem a conhecer o papel de tanso a que esse conto do vigário os tinha levado. Então, vão chamar e sugerir aos amigos ou "outros" que entrem e sintam na pele o mesmo logro. E o negócio continua. “Está bem”, - anuiu Castelo - "bota prà blusa!. "Com o mal dos outros posso eu bem!"